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Alexandre Brandão da Veiga 30 de Agosto de 2006 às 12:30

Boas pessoas e bons sentimentos

A Europa obedece a um princípio igualmente estranho na História da cultura. Em muitas culturas o nível superior e o médio estão relativamente próximos. Entre Gershwin e Fred Astaire a distância não é assombrosa. A prova é que bebem nas mesmas fontes e o s

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"Nada é mais repulsivo do que quando ocorre ao carácter trivial querer ser amável e ingénuo; ele que deveria cobrir-se com todos os mantos da arte a fim de ocultar a sua asquerosa natureza."

Schiller

Vejamos os argumentos. Primeiro: "Há estrangeiros extracomunitários que são melhores pessoas que a maioria dos europeus". Segundo: " As culturas não europeias têm muitas qualidades que bem gostávamos nós de ter". Terceiro: "As sociedades enriquecem-se com contributos de povos vindos de fora".

Estes são em síntese os argumentos que nos invadem no quotidiano. Embora sejam no todo filhos da mesma cepa apresenta cada um deles as suas peculiaridades que gostava de analisar.

O argumento das pessoas maravilhosas que as outras culturas têm. Curioso. O argumento está no mesmo plano que "eu não sou racista porque alguns dos meus melhores amigos são pretos". O argumento é tão primário que, mais que o seu conteúdo, espanta o simples facto de ser enunciado sem provocar riso.

Mais significativo que seja usado, o de não suscitar o enxovalho. Diz muito sobre o entorpecimento do espírito crítico na nossa época.

É evidente que existem pessoas pavorosas na Europa. Basta ligarmos a televisão para vermos concidadãos nossos imbecis, feíssimos, ignorantes, mal formados, pretensiosos. Não é novidade para ninguém que na Europa não existem só belezas clássicas ou grandes pessoas. Mediocridade, confrangedoras existências existem em todas as culturas e a estatística não demonstra se são mais ou menos numa ou noutra cultura.

O que tem de infantil o argumento é o de fulanizar, de reduzir a uma questão de pessoas individuais, um problema que é geral. Seria a mesma coisa que dizer que o impacto de um simples átomo de ferro não tem efeito nenhum e em consequência um martelo na cabeça do transeunte não tem mal nenhum. Cada um sabe o valor da sua cabeça. Este tipo de argumentação denuncia incapacidade de abstracção. E o facto de ser acolhido em silêncio mostra que esta incapacidade não é punida. Ou seja, a menoridade intelectual passeia-se impune nas nossas praças.

O segundo argumento é também destituído de sentido. É evidente que nenhuma cultura tem o monopólio de todas as qualidades, e que é bem provável que a cada cultura lhe faltem algumas. Qualquer imbecil pode dizer esta frase com a certeza da impunidade. E dá-se a coincidência de ter razão. Por pura e simples coincidência.

Mas questão bem diversa é a de descriminar quais são as qualidades que faltam a uma cultura e quais se encontram presentes noutra. Quando se começa a desfiar este rosário percebemos que são tão ignorantes de uma como de outras culturas.

Questão bem diversa igualmente é a ponderação global, a capacidade de fazer um balanço. Isto pressupõe sentido de justiça e inteligência. E quando vemos que o balanço falta porque apenas se quedam por generalidades, vemos que lhes falta não é apenas a inteligência como o sentido de justiça.

Outras vezes ainda o argumento vira-se contra o próprio autor. As culturas não europeias parece que criam vidas muito mais integradas e harmoniosas em sociedade, segundo dizem. Mas quando vemos os mecanismos que geram essa dita maior harmonia, verificamos que são mecanismos de opressão, familiar, religiosa, estatal, ou étnica. Os mesmos que os defensores das boas pessoas contestam na Europa.

Admiram a coragem da mulher do Maghreb, no que têm alguma razão, mas esquecem-se que se ela é corajosa, não é pelos maravilhosos mecanismos sociais em que se integra, mas porque eles lhe geram imensos obstáculos. Outras vezes ainda há apenas falseamento. Quando se estudam certos rituais não europeus salienta-se como inexistem na Europa. É verdade que o antropólogo de pequena burguesia que analisa a cultura japonesa estranha que haja um ritual do chá. Em casa dele nunca o bebeu, ou fazia-o pela caneca.

O terceiro argumento já não é infantil, mas falacioso. Que as culturas se enriqueçam com contributos externos é verdade, mas nem sempre. Depende de quem recebe e depende de quem dá. Que a Europa tenha recebido muito de outras culturas ninguém o contesta. Que essa recepção tenha sido útil dependeu mais do trabalho que os europeus dela fizeram, o que é igualmente inegável. Pode-se pôr um tratado de álgebra abstracta no meio de um pavilhão de oligofrénicos e duvido que tenha uma grande valia no seu desenvolvimento. Da mesma forma ignoro que imenso contributo pode dar uma tabuada introduzida subrepticiamente num centro de matemáticas aplicadas.

O terceiro argumento já denuncia apenas má fé, o ódio a qualquer espécie de critério. Nem tudo o que se recebe é bom. Os nazis deram contributos culturais imensos na Polónia, mudaram de forma brutal, esmagadora a cultura polaca durante a ocupação. Ignoro se isso é considerado positivo para os defensores dos bons sentimentos. Nem tudo o que é intenso, extenso ou prolongado é só por esse facto bom. Culturas imensas viveram em estado vegetativo durante séculos, ricas, prósperas, mas medíocres, sem criação própria. A História está cheia de exemplos assírios e turcos.

A tríade argumentativa a favor das boas pessoas, das boas culturas, do que em conclusão tem a imensa qualidade de não ser europeu, obriga-nos a pensar um pouco sobre o que leva a criar este tipo de movimento.

A Europa cansou-se de cultura e de História, não por ter pouca, mas por ter em excesso. O problema da Europa não é a falta de qualidades, mas o seu excesso. Povos viveram séculos e séculos com pequenas transformações do seu modo de vida e por isso puderam adaptar-se gradualmente a essas transformações. A Europa, pelo contrário, mudou, criou em intensidade, extensão e diversidade jamais vistas na História. O primeiro traço explicativo é o cansaço, portanto. O problema é que o cansaço depois do esforço suscita-nos compaixão. Quando as pessoas nascem cansadas isto apenas nos pode criar condescendência, quando não desprezo.

Mas a Europa obedece a um princípio igualmente estranho na História da cultura. Em muitas culturas o nível superior e o médio estão relativamente próximos. Entre Gershwin e Fred Astaire a distância não é assombrosa. A prova é que bebem nas mesmas fontes e o segundo canta o primeiro. Entre Hemingway e o filme série B americano a distância não é abismal. A prova é que um se alimenta do outro. Mas já a distância que vai da cançoneta de rua e Bach, ou então o poema popular e Dante ou ainda o cálculo de merceeiro e Riemann é abissal, são mundos de distância que os separam. É evidente que muitos me contestarão. Não leram Riemann (nem sabem que é, para dizer a verdade) mas já decidiram que era fácil de ler. Assim se vê a sua abertura de espírito. Na Europa a distância entre a cultura média e a superior sempre foi abissal. Em toda a sua História sempre houve uma imensa distância entre a cultura de elites e a da maioria da população.

Este é um traço típico das grandes culturas indo-europeias. Linguagens diversas, mundos diversos, o único paralelo que encontramos vemo-lo numa sociedade nossa prima, muito mais próxima do que vemos em geral, a Índia.

Esta distância, que Ortega e Nietzsche já analisaram, cria um sentimento atroz, persistente, e geralmente secreto, que não se pode invocar publicamente: o ressentimento.

Uma sociedade de cansados, inferiorizados perante a grandeza da própria cultura, de ressabiados. São eles quem nos dá lições sobre como são belas as outras culturas, quantas mais qualidades têm de que a nossa carece, que nos querem ver dissolvidos noutras culturas.

A sua motivação é simples de se compreender. É que um mundo de mistela (sem real miscigenação), em que tudo se vê de forma passageira, como meros turistas, em que o olhar não tem permissão de parar um pouco para ponderar, sindicar e aprofundar, esse mundo é o deles. Em que o seu cansaço não é condenado por preguiça, a sua pouca inteligência por triste amputação, ou o seu nulo sentido de justiça por má fé. Não são os outros que pretendem justificar, apenas a si mesmos se pretendem legitimar. Não são os outros que defendem, mas a si mesmos. Com a pobreza que os caracteriza.

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