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Alexandre Brandão da Veiga 09 de Novembro de 2006 às 13:59

A exigência que fenece

Quando nos confrontamos com o passado, há dois riscos que são igualmente graves. Ou douramos tudo, ou pintamos tudo de negro. Se fazemos a primeira das coisas, tendemos a pintar de negro a época em que vivemos.

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Se fazemos a segunda, sentimo-nos a viver uma época dourada. No primeiro caso, a má disposição leva-nos à melancolia, no segundo à autocondescendência e arrogância.

Platão, que era um homem de coragem, não se escusou de graduar os piores dos regimes. E lembrou-se de afirmar que o menos mau, na versão degenerada, era a demagogia, um pouco melhor que a tirania. Do mesmo modo, não nos podemos escusar de fazer balanços, ver no seu conjunto o que perdemos e se compensou o que ganhámos.

A desculpa não é o contrário da culpa. O contrário da culpa é a inocência. A desculpa é o contrário da exigência. Tanto mais crescem as desculpas, tanto mais descem as exigências que nos fazemos a nós e aos outros. A prova é que são precisamente os que contestam que a culpa existe que fazem crescer as desculpas. Não é da sua inocência que curam, mas do denegrir a exigência. Quando a desculpa decorre de um acto de juízo pode ser legítima. No entanto, a verdade é que a desculpa floresce sobretudo num ambiente plebeu em que se pretende minar a exigência. O que na ciência é explicação convola-se no espaço plebeu em desculpa.

O século XX, a que pertencemos ainda culturalmente, maugrado a aritmética dizer o contrário, tem sido generoso nestes dois tipos de fenómenos: o nascimento espontâneo da desculpa e a convolação da explicação em desculpa.

O mau carácter, analisado da forma mais imparcial de que o ser humano é capaz (o que é dizer muito ou pouco consoante o ser humano) pela ciência transforma-se em caso clínico. Se tivermos em conta que não é função do médico julgar o paciente isso diz-nos muito pouco sobre o que significa o mau carácter. É que não tendo ele a função de julgar não pode daí decorrer que ninguém pode fazer julgamento. Talvez se deva mesmo dizer que reforça a ideia de que ninguém nos pode eximir de julgar.

O inconsciente vai sendo segregado pela filosofia romântica alemã até desembocar nas psicanálises e psicologias complexas e as massas aproveitam para descobrir nele desculpas. Descobrem-se taras genéticas e daí se retira que o espaço da escusa cresceu. A ciência histórica explica o atraso de uma cultura e entram aí em bando os desculpadores oficiais de misérias alheias. O delinquente é vítima das circunstâncias, preferindo-se assim retirar-lhe a humanidade a puni-lo.

E quando não é pela ciência, aparece a desculpa por geração espontânea, segregada por referências mal digeridas a outras culturas ou à imaginação própria. A culpa é dos extraterrestres, de vidas passadas, dos números, dos astros, das cartas, das linhas da mão.

O mais comum aliás é o artífice de desculpas ir buscar a sua legitimidade numa mistela de fontes de legitimidade, que passam pela ciência (que em geral não estudou), as outras culturas (que só leu em guias turísticos) ou da sua visão mirífica (cuja credibilidade não é em geral aumentada pela sua falta de inteligência).

Os níveis de literacia são baixos? Não é grave, significa apenas que não compreendem os textos escritos na própria língua materna. Desculpa que já vi numa alta responsável da educação. O ensino está mal, a culpa não é dos professores, nem dos alunos, nem dos pais. O sistema de saúde está mal? A culpa não é bem dos profissionais, nem dos doentes. O País é pouco produtivo? A culpa não é nem dos gestores, nem dos trabalhadores. O País é mal governado? Há desculpas para os governos, a oposição e as populações.

A desculpa cresce assim no espaço público como um cancro, instilando-se nos corações e deixando de ser erro, acidente da existência, para se transformar no seu fundamento. Não é pois um fenómeno irrelevante sob o ponto de vista político. A partir do momento em que se transforma em fundamento da vida, assim se arvora em fundamento da vida política.

O que é a exigência? É reconhecer que o que se é não chega, o que os outros são não chega e que sobretudo o simples facto de se ser como se é não é brasão. O paradigma da exigência é o da nobre glória. Não basta ser rei da Macedónia, não basta ser general de Roma, não basta ser escrevinhador de folhetins, não basta ser um artífice médio. Não me basto, não me bastam os outros só pelo simples facto de as coisas estarem como estão. A exigência é sempre um exercício de liberdade e imaginação. Comparo o que existe com o que poderia existir. E de esforço. Tento atingir o que deveria existir. Se ignoro, se sou inepto, se não dou felicidade aos outros, algo corre mal em mim. Se os outros erram, se são diminutos, algo está mal neles. O espaço da desculpa é um mundo sem liberdade, sem imaginação e sem esforço.

O exigente não vive sem transcendência. O desculpante faz tudo para a minar. A sua ambição é ser desculpado. A desculpa é assim a arma preferida a usar contra a transcendência.

Se a desculpa nos fizesse merecer apenas só desprezo já seria grave. Mas deve-nos fazer surgir o receio. Porque além de mesquinha é perigosa. O médico mata o doente? Não é grave. O advogado não cuida dos interesses do cliente? Acontece. O pai não põe o cinto de segurança ao filho e este fica paraplégico? São azares.

Além da transcendência o maior inimigo dos desculpantes são as sanções. O desculpante não quer sanções. Gosta de prémios, mas como não tem desejo de equilíbrio abomina as sanções, porque sabe que em geral merece recebê-las. Está contra multas, coimas, prisões, indemnizações, crítica pública, censura legítima. Não gosta da justiça, apenas quer o agradável. O que é compreensível só do ponto de vista do desejo, mas insuportável para a manutenção de uma sociedade.

O desculpante motiva-se assim apenas pelo desejo – e pelo medo da sanção. Por isso por detrás das suas teorias apenas se encontra esta necessidade de se escusar à responsabilidade. Sabendo-se em risco de ser condenado, apenas se quadra bem numa cultura de perpétua amnistia mesmo em detrimento da justiça.

Num mundo de exigência, a primeira pergunta que se coloca a alguém, seja ele personagem pública ou não é: em que errei eu? Numa sociedade da desculpa o problema é: como me escusar da responsabilidade? Um homem em movimento ou sobe ou foge. E numa sociedade de desculpa apenas imperam os fugitivos, os fora-da-lei.

Confesso, não trouxe uma régua e não posso demonstrar que a nossa é a época de mais baixa exigência de todas. Mas convenhamos: tem vindo a diminuir. E o sinal é a explosão das teorias da desculpa. Os efeitos são conhecidos. A decisão política torna-se errática. Com efeito, se o centro do pensamento é a desculpa desaparece a ideia de pertinência.

O desculpante vive bem minando a transcendência, já vimos. Não gosta de estalões elevados que lhe mostrem a sua pequenez. Não gosta que a Europa seja uma imensa cultura, para poder ser altaico à vontade, bárbaro, inculto, caprichoso. A moral desce e vai-se criando terreno fértil para o crime crescer, a arbitrariedade, a dissipação. Descendo a exigência, desce a ambição e cresce proporcionalmente a cupidez. O mundo à nossa volta é mero objecto de gula. Os outros tornam-se mero objecto de uso. Não é sequer Maquiavel que ganha mas Gargantua.

Perante o mundo não lançamos o nosso olhar, mas apenas a nossa boca. Não nos melhoramos, mas apenas consumimos. O grito de Nietzsche já foi interpretado de mil formas. Deus morreu! Verificação de facto, mera glosa evangélica, anúncio de um programa, ou alerta, provavelmente cada uma destas versões tem a sua parte de verdade. Mas tenhamos a coragem de o afirmar. O problema da nossa época é as pessoas terem apagado Deus para ficarem em frente de si. O resultado é que ficam em geral à frente de bem pouca coisa.

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