Opinião
Facto religioso e cultura religiosa
Ouçamos com atenção duas afirmações que pululam pelos passeios mais ou menos urbanizados do espaço público. "Eu sou um homem laico, com uma concepção racional, científica de vida." "Para que haja mais compreensão pelas outras culturas, é preciso ensinar o
As frases já por si têm muito por comentar, mas comecemos pelas ênfases que são feitas quando tal se professa. O primeiro sublinhado está em "científico". E sublinha-se depois "o facto". Duas ilustrações de uma mitologia popular que se reclina piamente perante os factos e a ciência e julga que uma e outros nascem da mesma árvore. Heidegger chamou muitas vezes a atenção para o perigo da idolatria dos factos. Isto porque, bem vistas as coisas, ele bem sabia que a obcecação com os factos era sempre o resultado de uma selecção cujos critérios nunca estavam bem enunciados. Quem selecciona, o quê, com base em que regra fica geralmente suspenso nesses cultores dos factos.
Associar factos e ciência é igualmente típico de quem não tem cultura científica. A maior parte da mais profunda ciência nada tem a ver com os factos em si mesmos, mas com relações muito mediatizadas entre eles. Não se mede a energia, mas manifestações dela, e as regras hermenêuticas da experimentação estão bem longe de ser simples descrições, seja lá o que isso for.
Quem afirma que tem uma visão científica da vida nada percebe da ciência. A ciência não serve para instaurar vidas, nem para as preencher. Uma vida escorada apenas na ciência é uma vida por instaurar e recusando o preenchimento. Atente-se que não proponho aqui nenhuma visão lírica da existência, mas uma bem realista. A prova é que os grandes cultores do cientismo foram medíocres cientistas, mesmo quando eram eruditos. A sua prática foi sempre a da redução da vida e a da criação de uma mitologia alternativa (a Razão, a Ciência, a Verdade, o Facto, etc.). A grandeza da ciência resulta exactamente das suas limitações, do que ela suspende, do que ela exige de abdicação no exercício do juízo. A sua potência resulta exactamente da concentração de esforços. Mas quem já se concentrou alguma vez nesta vida sabe que isso tem um custo, e nomeadamente o de se obnubilar o que está a nossa volta.
São os mesmos que cultivam esta visão "científica" do mundo que têm vindo a lutar para que se ensine nas escolas o "facto" religioso. Assim como sempre fui apaixonado pela ciência, da mesma forma penso que a aprendizagem do facto religioso é fundamental. Se, por exemplo, não soubermos que o Islão é uma religião recente em comparação com o cristianismo, nada percebemos da sua configuração. O "laico" estado turco, aliás, bem faz uso disso ao afirmar em sítios oficiais que "os Islão é a mais recente e a mais perfeita das religiões", versão abusiva da coisa, mas mais não se pode esperar de um povo que nunca produziu cientistas, nem primou pela honestidade histórica.
O facto histórico é insubstituível. Se eu não souber que o Concílio de Niceia é de 325, se julgar que se realizou no século XV, se julgar que foi convocado pelo papa, ou que se passou na Gália, não compreenderei nada do desenvolvimento do cristianismo. Se eu acreditar piamente que a boa palavra se espalhou apenas pela palavra e esquecer que implicou guerras, alianças, política e dramas estarei a falsear a compreensão do cristianismo. Se eu ignorar o papel de São Columbano ou São Bonifácio ou São Bernardo estarei a falar sobre uma estrutura rígida, sem movimento histórico. De novo falsearei o cristianismo.
Mas não bastam os factos, é necessário igualmente conhecer as ideias religiosas. Porque existem ideias religiosas. Que existem ideias religiosas qualquer estudioso da filosofia europeia se apercebe disso. Que elas não limitaram os grandes pensadores é igualmente por demais evidente. A Santíssima Trindade suscita problemas filosóficos e lógicos que um Deus simplesmente uno e sem "associados" do judaísmo e do Islão não colocam. A defesa da liberdade matrimonial pelo cristianismo suscita diversos problemas de engenharia social que a poligamia muçulmana pode ignorar. Uma concepção cíclica do tempo ou do pensamento ou um maior fatalismo modificam o quadro em que se pode desenvolver a ciência. A obsessão moderna com a certeza na ciência só se compreende num quadro em que a Revelação se enfraquece como fonte.
Mas não bastam as ideias, é necessário conhecer os sentimentos. Desde Schleiermacher no século XIX isto tornou-se evidente. O sentimento religioso é pedra fundamental de uma religião. Não a única pedra, mas pedra de qualquer forma. Sem perceber que sentimento gera, que sentimento molda, que sentimento restringe, que sentimento expande uma religião nada se percebe dela. É vagamente diversa uma religião que manda sacrificar crianças a Baal Moloch ou uma outra que manda proteger os fracos. É diferente uma religião que manda respeitar quem nos respeita ou uma outra que manda amar os inimigos. Os paradigmas morais e sentimentais que uma religião impõe forçam-nos a uma comparação com esse mesmo paradigma e geram uma maior ou menor diferenciação sentimental.
Mas não bastam os sentimentos, é necessário igualmente conhecer a simbólica. Um mundo religioso rico, sobretudo o europeu e o indiano, que aceita toda a espécie de expressão religiosa (visual, musical, dramática, literária, etc.), espalha-se por todas as dimensões da vida. Mas a compreensão do pensamento religioso e do sentimento religioso exige um exercício simbólico autónomo e esse é de natureza fibrosa, estomacal. Quem não pensa com a cabeça não percebe profundamente a religião. Mas quem só sabe pensar com a cabeça e não é capaz de pensar com todo o corpo é igualmente ignorante dela.
Mas não basta uma simbólica, é necessária uma antropologia total. É diversa uma religião de submissão de uma outra que tem como imperativo a divinização do homem. A palavra do Apocalipse "vós sois como deuses" que os ortodoxos orientais bem melhor desenvolveram que os ocidentais exige um reconhecimento de si único da história.
A cultura profunda, e por maioria de razão a cultura religiosa, exige um afundamento. Sem esse afundamento não há cultura religiosa. E essa é que é essencial para se compreender as outras religiões, não o mero facto histórico religioso. Esse esforço passa pela ciência, mas exige ele mesmo um estudo religioso. Quem não forma a imago Dei nada pode perceber de religião, mesmo que no fim a veja só como uma imagem. Quem aceita estudar a religião, mas se recusa a sair da sua prisão factual (que são "os factos"? quais "factos" escolhe ele?) está no fundo na mesma posição de quem aceita discutir o problema dos direitos das mulheres desde que possa continuar a bater na sua dentro de casa. Não sai de onde está, não vai de encontro ao diverso.
Quem pretende estudar o direito chinês não está forçosamente na posição de o querer respeitar mais. Quem quer impor o estudo do mero facto religioso não aumenta a compreensão sequer desse facto. É como contar uma história abstraindo do sujeito na sua profundidade. A anedota passa a substituir a compreensão.
Repare-se que o estudo religioso profundo não nos aumenta o respeito das outras religiões como consequência necessária, apenas pode aumentar a compreensão. Mas ao menos os desprezos serão substantivos, as rejeições fundamentadas, as recusas consistentes. Não há receita para aumentar o respeito e o amor, salvo o objecto desse sentimento ser de natureza a nos merecer em critério tais sentimentos. Uma sociedade colectivamente não aumenta o amor, salvo se o fizer por atitude religiosa e no âmbito de certas religiões. Mas é precisamente isso que recusa quem apenas quer estudar o "facto" religioso.
No espaço público, a panaceia do facto religioso mostra mais uma vez uma visão pudibunda das coisas, asséptica. Sim, desde que não seja vivo, desde que esteja em caixas de Petri, mesmo que nunca as tenham visto. Sim, desde que haja isolamento, luvas de látex, fácil objecto de manipulação. Sobretudo, nada que nos possa explodir nas mãos ou possa determinar a nossa vida. Estudo, sim, mas do que não toque em nada essencial nas nossas vidas.
Aumentará a compreensão das religiões? Para estranheza de muitos, muitas vezes os extremistas religiosos entendem-se melhor que os tolerantes oficiais. É que tendem a respeitar mais facilmente quem ao menos partilha com eles alguma coisa: um contacto profundo com a realidade. É que a cultura religiosa implica risco. Quem nela se aventura fá-lo por sua conta e risco, sujeita-se a um afundamento. Mas como o espaço público está cheio de esbracejadores impenitentes, cultores da pura gesticulação e do flatus uocis, reaccionários empedernidos, fazem estes tudo para se agarrar à sua tábua de salvação, aos seus mitos. Sob a capa dos factos esperam ofuscar a realidade. Defendem-se de uma tempestade que não compreendem assentando-se em fina balsa. Os "factos" são para eles uma forma de autodefesa, de defesa de uma mitologia que tanto acalentaram. E tão fraca é a balsa que os sustém que não se isentam de afundamento. Só que desta vez involuntário... e "indignificante".