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20 de Dezembro de 2006 às 13:59

A matemática e o espaço público

Confesso que fiz o curso de direito por ser intelectualmente relaxante, entre outras razões. Lembro-me sempre de vários docentes que teimavam em doutrinar os alunos para o facto de que "isto não é como a matemática em que dois e dois são quatro".

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Ora dá-se o caso de na matemática dois e dois nada significarem (salvo para algumas versões da lógica em que a conjunção de termos tem significado; em princípio só há conjunção de proposições). E se queriam dizer que na matemática dois mais dois são quatro, isso também não é verdade. Dois mais dois não são sempre quatro. Tudo depende da estrutura algébrica de onde se parte. Peano e Zermelo no fim do século XIX, início do século XX, bem tentaram demonstrar que dois mais dois eram sempre quatro... e falharam. Dando um exemplo muito simples, existe uma estrutura algébrica, um anel, chamada a "dança das horas" em que sete mais oito são... três. Todos nós a usamos. Se partimos às oito da manhã e demorámos sete horas a chegar, dizemos que chegámos, não forçosamente às 15h00m, mas às três horas.

Este raciocínio pode parecer bizantino, forçado. Caramba, isto não é matemática. É mero sofisma, adivinho certos transeuntes a dizê-lo. Outros ainda poderão dizer: ora são apenas formas de dizer. A verdade é que é graças a este ramo da matemática, chamado classicamente de álgebra abstracta ou álgebra geral, que funcionam os correios britânicos na distribuição das suas cartas. As aplicações práticas deste tipo de raciocínio que gente inculta pode chamar de alambicado são suficientes para demonstrar a bondade da perspectiva aos grosseiros que apenas vêem nos efeitos práticos a justificação das coisas.

Mas sob o ponto de vista teórico a importância destas conclusões é ainda bem maior. É que demonstra que é exactamente o rigor da matemática que permite a sua liberdade. Não há liberdade sem disciplina, e quanto maior a substantiva disciplina maior a liberdade.

Outro exemplo encontra-se no pensamento do infinito. Durante séculos, e em termos simplistas, o pensamento humano apenas distingiu dois infinitos. O matemático e o divino, sendo o primeiro uma mera imagem do segundo. Mas quanto ao infinito todos concordavam que não há infinitos maiores que outros por definição. Desde há muito se sabe que o infinito viola as regras comuns do cálculo. Somado ou multiplicado a si mesmo dá-se a si mesmo. Dividido ou subtraído por si mesmo dá uma indeterminação. Cantor, um cristianíssimo matemático obcecado com o infinito, que por sinal é um dos grandes criadores da teoria dos conjuntos (não é preciso saber muito de matemática para saber a importância que esta teoria tem na nossa vida de todos os dias), criou a álgebra dos transfinitos em que há "infinitos" (chamemo-los assim) em número infinito, uns maiores que outros.

Um terceiro exemplo para finalizar, este anedótico. O grande matemático Hilbert foi um dia confrontado com a notícia de que um dos seus alunos tinha abandonado esta ciência para se tornar escritor de ficção científica ou policiais, se bem me lembro. A reacção de Hilbert foi: "não me espanta que assim seja". Quando lhe perguntaram porquê, ele respondeu: "não tinha imaginação suficiente para ser matemático". Porque a matemática, e os néscios ignoram-no, é antes do mais um poderoso exercício de imaginação, uma forma superior de poesia.

A matemática não existe sem disciplina, é isso que lhe dá liberdade, nem existe sem imaginação, é essa a sua marca poética. Não cabe aqui fazer a demonstração completa deste facto. Apenas gostava de salientar de como tantas vezes a matemática foi feita de repulsas em relação a realidades que apareciam a contragosto: números irracionais, negativos, imaginários, complexos. De como à repulsa se seguiu a resignação, mesmo que tomada de desconforto, até que alguém tomou o passo arrojado de aceitar dentro das portas da cidade essas figuras excluídas, como cidadãos de parte inteira.

Mas a matemática também demonstra como a criação vem do conservadorismo. Foram aqueles que quiseram preservar o postulado das paralelas que abriram a via para a sua contestação, e a criação das geometrias não euclidianas. Só construíram, apenas ultrapassaram a mera crítica, na medida em que procuraram o que se conservava na mudança. A geometria projectiva é outro bom exemplo deste facto. É o que se conserva que se procura, depois de se perceber em primeiro lugar o que muda.

Mais uma vez a conexão desta matéria com o espaço público, os políticos, os comentadores, as pessoas que se manifestam em público, parece não existir. No entanto, é por demais evidente, tanto quanto triste.

Quem domina no espaço público são juristas, economistas e quando muito engenheiros. Aceitando o risco das tipificações, e mantendo as cautelas devidas (que infelizmente não são muitas), os juristas dão exemplos de excelência no analfabetismo matemático. E quando ouvi três economistas dizerem que há teoremas na matemática que são indemonstráveis (!) e dando como exemplo o teorema fundamental da trigonometria (se há teorema que tem demonstração, aliás, demonstrações, simples, é este), fica tudo dito. E quanto aos engenheiros, basta ouvir o que alguns, com responsabilidade em tempos na educação, diziam sobre a vantagem de haver engenheiros a ensinar matemática no liceu porque se perdia menos tempo em demonstrações na engenharia que nas faculdades de ciências, para se perceber que está tudo dito. Perder tempo em demonstrações quando se fala em matemática revela tudo o que (não) se sabe em profundidade sobre matemática.

Não é por isso de admirar que falte a muitos deles disciplina e por isso sejam incapazes de conceber a verdadeira liberdade. Liberdade para eles é um conceito que está na Constituição (mas as constituições nada dizem sobre a realidade, são meros desideratos, mais ou menos bem sucedidos, e quanto ao seu sucesso não é nelas que se tem de procurar). Ou é um dogma meramente económico. Quanto à liberdade de pensamento, tem de se reconhecer que ela é muito fraca. Uma criatura que pára como boi a olhar para um palácio quando se fala de infinito, de álgebras mais gerais, é uma pessoa com um campo de visão estreito. O analfabetismo não é carta de brasão em nenhuma área.

Não é por acaso que são destituídos de real imaginação e consequentemente de poesia. Pode-se dizer, mas para que é necessária poesia para se ser político? Ou sequer de imaginação? Não é antes melhor ter políticos pragmáticos?

Enfim, tudo depende do que se chama pragmatismo. E só essa matéria daria muito que dizer. Mas de momento fiquemo-nos com uma certeza. As realizações concretas, antes de o serem, foram imaginadas. Foi necessário alguém que tivesse imaginação para as conceber. Pode-se obviamente dizer que quem tem imaginação matemática não tem forçosamente política e vice-versa o que é fácil de conceder. Mas não deixa de ser significativo de que sejam falhos de uma e de outra as personagens do espaço público. Não se trata de uma orientação mas de uma falência em absoluto.

A indisciplina de pensamento, de outro modo, também impera. Como exemplo basta ver que toma por imbecil a opinião pública quem fala de armas de destruição em massa no Iraque como fundamento para a guerra sem nunca referir o conceito de poder. Toma por estúpidos todos os outros quem não sabe distinguir nos outros quem o é de quem não o é. Ou seja, falta-lhe critério, falta-lhe rigor e presume que o mundo é feito à sua imagem. Ora a matemática é exactamente pressupor o contrário: que o mundo não é feito à nossa imagem. Para por vezes se ter a surpresa de em conclusão se inferir o contrário. Mas o que é conclusão não pode ser pressuposto. Mas desta destrinça elementar o homem público nada sabe. Qualquer fraude é boa para o justificar, e talvez só a fraude o justifique.

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