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Alexandre Brandão da Veiga 22 de Novembro de 2006 às 13:59

Notas sobre a educação

Recentemente, a Suíça alemã decidiu acabar com a possibilidade de se usar o dialecto local nas aulas e de dar o mesmo valor ao dialecto que se dá ao alemão, chamemos-lhe assim, correcto.

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Facto significativo num país que mais que outro forneceu pedagogos à Europa, ou que mais atraiu gente dedicada à educação. Rousseau e Pestalozzi, mas igualmente Piaget e indirectamente Pfeffel todos eles deram à Suíça um peso na pedagogia que muitos outros poucos países poderão pretender emular.

Sempre que se fala de educação, todas as pessoas concordam que deve ser uma prioridade. Mas quando há campanhas eleitorais, quando se pede a um primeiro-ministro para falar da coisa, apenas se percebe o imenso vazio de ideias na matéria. Por isso parece-me importante tentar ver para o que serve e para o que não serve a educação.

A educação não serve nem nunca serviu para criar génios. Não serve nem nunca serviu para criar santos. A carência de educação pode fazê-los mirrar, pode estimulá-los, mas não é elevando o nível de educação que se obtêm automaticamente pessoas com força criativa.

A educação em geral aumenta a capacidade produtiva, mas aumenta sempre as expectativas. A experiência tem demonstrado que as expectativas tendem a crescer mais depressa que as capacidades produtivas. O resultado é o de uma educação disseminada criar em geral frustrações. Ou por aboborar especialidades que rapidamente se tornam excedentárias para as necessidades dos países (juristas, literatos semi-formados, etc.), ou por dar preparação de base insuficiente, ou por não estimular o realismo. Quem tem mais educação tende a ter sempre mais expectativas, mas raras educações preparam para realizar essas expectativas.

A educação primária é a que mais resultados tem por si mesma. De seguida existe uma lei de custos marginais crescentes com utilidades marginais decrescentes. Cada nova dose de educação é cada vez mais difícil e produz uma margem cada vez menor de resultados. A experiência micro desta lei encontra-se na vida do dia a dia. Aprender as bases do cálculo infinitesimal é tarefa simples. E são elas que se usam em todo o cálculo. Mas desenvolver ramos especiais do cálculo implica o esforço de uma vida. Aprender os princípios da electricidade é coisa simples. Mas perceber em profundidade o que significam é tarefa de uma vida. E assim por diante. No plano macro vale a mesma lei.

Mas para que serve a educação? Entremos sem dó no campo dos pedagogos, nem que seja para dele sair rapidamente. Para que serve? Serve exactamente para que as pessoas sejam diferentes do que são. Exactamente o contrário do que certa versão vulgata da pedagogia de matriz Rousseana nos diz. Senão vejamos. As crianças, antes de aprenderem, são analfabetas, sem ofensa para elas. Se uma pessoa já sabe latim, o que vai fazer para a escola? Se se criam instituições para aprender é porque as pessoas não sabem. Se as pessoas não sabem comer à mesa, para que precisam elas de aprender? Depois de aprender já sabem e fazem coisas que não eram capazes de fazer. A educação não tem como finalidade fazer com que as pessoas sejam o que são, salvo numa perspectiva dialéctica, que por sinal escapa a grande parte dos educadores. A educação é sempre uma violência que se pratica em relação aos educandos. Independentemente da sua vontade de aprender entende-se que têm de aprender. Quando um professor diz que aprende mais do que ensina dá-me vontade de obrigá-lo a pagar para dar aulas. A antropologia que subjaz a uma visão não directiva da educação é no fim de contas profundamente pessimista: acha que a educação da pessoa visa torná-la nela mesma. Ou seja, as pessoas são apenas equívocos antes de educadas, são algo diverso do que realmente são. O vício é patente. É verdade que uma educação nunca deve destruir uma personalidade. Mas se não a mudar de nada serve.

Até aqui vimos as invariantes, Vejamos agora o que se pode fazer com este pano de fundo. Que margem de manobra nos dão estas inevitabilidades?

Em primeiro lugar, para que não serve a educação? Não serve para dar felicidade. Assim como não pode ter a crueldade de a destruir, e deve evitar fazê-lo, a educação não pode ter essa presunção. Se nem a dada individualmente pelos pais, por maioria de razão a dada por um sistema formal. Em segundo lugar, para criar génios. É-lhe impossível fazê-lo, e nem os mais optimistas acreditam nisso. Em terceiro lugar para criar profissionais. A educação enquanto tal nunca gerou profissionais nem é essa a sua função. Em quarto lugar, o de criar santos. Nem para as beatitudes celestes, nem as ecológicas, dos direitos humanos ou outros.

Para que serve então uma educação? Para que deve servir? Para dar quadros: de expressão, de compreensão, de referências. Para tornar o pensamento e a comunicação mais eficazes e certeiros. Para isso tem de integrar os aspectos afectivos, sem dúvida. Mas sempre considerando que o que se dá são quadros. Para integrar criticamente. Integrar porque as crianças têm a sorte, mas igualmente a corveia, de entrar num mundo que já tem uma imensa riqueza para a qual em nada colaboraram. Precisam de ser integradas nele, sob pena de em adultos de se tornarem em políticos que dizem que a Turquia é um país europeu sem morrer de vergonha, ou seja um dos graus mais baixos a que vejo ser possível cair a humanidade. Mas integrar criticamente, ou seja, sem fundir. Bela tradição europeia a nossa (muito anterior ao iluminismo, ao contrário das histórias infantis que andam na cabeças de uma classe política analfabeta) a da profunda adesão que pressupõe ao mesmo tempo fazer parte e ser autónomo.

Isso significa pensar não apenas nas metodologias mas igualmente nos conteúdos. Na metodologia apenas vejo como adequado um regime de afectos baseado na autoridade. Se um professor não a tiver nada fará de jeito com os alunos. O âmbito disciplinar será sempre o centro da aula em vez de os conteúdos. No plano da metodologia igualmente, retirando as mitologias sobre a pedagogia e dando mais formação cientifica que pedagógica, sob pena de os professores conhecerem muitos métodos para dar uma matéria de que afinal sabem muito pouco. Quanto aos conteúdos, a verdade é que as pessoas mais completas e elásticas que conheço têm uma dupla formação: clássica e científica. As bases curriculares continuam a ser para mim as línguas (materna, as vivas e as mortas), a História, a Filosofia, a Música, a Educação Visual, e nas ciências a Matemática, a Física, a Química e a Biologia. Aprofundar e não dispersar deveria ser o lema. Conheço pessoas que com boas bases de alemão aprenderam relações públicas, mas não a inversa, pessoas que sabendo História fizeram ciência política mas não a inversa, que sabendo matemática foram bons engenheiros, mas não a inversa.

Mas o espectáculo que vemos nas escolas é exactamente o inverso. Cadeiras menores foram por razões ideológicas empoladas (ginástica, trabalhos manuais, por sinal idolatrando os melhores ao contrário das outras cadeiras - não se trata de frustração, tive sempre óptimas notas nestas matérias, eram fáceis demais para não as ter), ou então imposto um conjunto infernal de matérias irrelevantes para formação geral (jornalismo, relações públicas, técnicas de tradução, e mais umas centenas de inépcias). Qual o resultado deste tipo de currículos? Um gasto imenso para começar. Para o Estado, para os alunos, para os professores. Saem dos liceus grandes especialistas em jornalismo ou relações públicas? De todo. Ganho nulo. E saem alunos sem saber nenhuma língua, nem a própria, nem a dos outros, nem as mortas, analfabetos musicais que não sabem ler uma pauta (incluo-me nessa triste classe, para grande vergonha minha), analfabetos visuais, que não sabem ver um quadro, nem uma igreja, analfabetos matemáticos, que mal sabem o que é um teorema, analfabetos da física que ignoram o que seja a inércia (salvo por experiência intelectual própria). Destruição significativa de valor. Gastos elevados, ganhos nulos e destruição de valor, eis um saldo que me parece – temeridade minha – francamente negativo.

Não estou a idolatrar passado nenhum. Antigamente saíam pessoas com mais bons modos, melhor expressão de português e melhores bases, mas em suma com lugares comuns e pouco aprofundamento. Hoje em dia a diferença é que saem pessoas com pior expressão, outros lugares comuns, mas com em acréscimo a ilusão de que pensam por si mesmos.

A consequência no espaço público é evidente. Tudo se diz sem sindicância. O regime democrático deveria teoricamente ser o mais crítico, mas afinal acaba por ser o menos sindicado. A liberdade é substituída pela mera flatulência discursiva e a falha na pontaria permanente. Coxos de referências, zarolhos na contemplação do mundo, manetas do analfabetismo, tudo se pode dizer e o seu contrário. Os poucos que têm algumas luzes, por falta desta sindicância, acabam por dizer tão grandes enormidades quanto os outros. Mais subtis, menos perceptíveis para o grande público, mas igualmente sofismáticas.

Um povo sem educação sólida é facilmente manipulável. E não são relações públicas ou jornalismo que lhe dão sentido crítico e solidez de formação. Aí podem ser exercidas. Mas se na base estiver tudo o resto. E o resto faz-se no ensino básico e secundário. É esse o nervo do sistema. A linguagem comum de todos os cidadãos. Fraco seja, aí teremos a medida da linguagem comum. Hoje em dia: frágil, vazia, facilmente manobrável.

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