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Alexandre Brandão da Veiga 18 de Janeiro de 2007 às 13:59

O futuro inglês

Sob o ponto de vista internacional, o inglês está emparedado nas suas próprias opções. Servindo os americanos sem o ser, desservindo os europeus sendo-o, peça dispensável no conjunto do antigo império, sem liderança em nenhum novo processo histórico, ...

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Servindo os americanos sem o ser, desservindo os europeus sendo-o, peça dispensável no conjunto do antigo império, sem liderança em nenhum novo processo histórico, o inglês tem fama graças ao marketing. Vende o produto da britanicidade, e bem, entre classes semialfabetizadas.

A cultura é enérgica – quem não fala da diversidade cultural de Londres? Mas quando começamos a procurar os novos Turner, Purcell ou Maxwell, não podemos senão ficar desiludidos. Sejamos justos. Não estão piores que o resto do mundo, ou no que me interessa, da Europa. Mas não estando melhores não podem servir de paradigma. A sua energia cultural é uma agitação, uma enervação, um movimento meramente friccional.

A economia é dinâmica. Lançou-se no mundo pós-industrial com imenso sucesso. É dada como exemplo de êxito económico e em grande medida há que retirar lições, boas e más, dos seus métodos. Mas a sua base industrial fenece, a sua agricultura diminui o peso e grande parte dos centros de decisão situam-se fora do seu território. Ideóloga do pós-industrial, de um mundo apenas de serviços, transformou o que era meramente técnico, a teoria das vantagens comparativas, em religião. Os serviços absorvem tudo, como se fosse sensato pelo facto de podermos voar de avião decidirmos que andar a pé se tornou irrelevante. E quando em acréscimo se voa em grande medida com asas emprestadas.

Europeus de alma entregam o corpo alhures. O que significa que a sua alma está partida e em consequência padece de esterilidade. O que tem a oferecer ao mundo é um revivalismo da livre empresa, como um neogótico, um pré-rafaelismo requentado. Vendedores das relações públicas, são dados como preferência em relação aos franceses ou alemães, mas não como escolha primeira. Se citados, são-nos apenas como os melhores imitadores, no caso dos americanos, o que é injusto para uns e outros em certa medida.

Num mundo em que se formam novas grandes potências, desistiu de ser uma ou de participar em alguma. Prefere ser o grão-vizir do sultão americano, esquecendo-se da nobre tradição turca (europeia?) que faz do vizir um mero escravo, descartável à mínima indisposição do sultão. Tornada irrelevante mesmo como mera conselheira dos Estados Unidos (é um facto, não uma escolha americana – carece-lhe dimensão), não apresenta projecto de grandeza para o futuro, mas um mero projecto de gestão do mundo. Falta-lhe o fôlego, as ideias, o entusiasmo. Mandar é sempre dar a mão, e não tendo nada a oferecer de novo ao mundo, reduz-se a ser uma mera secção de relações públicas de um empresa cujo centro de decisão está alhures.

Os seus êxitos são os das relações públicas. Suscitam por vezes agrado, outras desconfiança, mas nunca a admiração e ainda menos o amor. Porque hoje em dia esquecemo-nos de que as culturas suscitavam o amor. A grega, a romana, a francesa, italiana, a russa, a inglesa. O império inglês de relações públicas é um império de desamor, de desafectação, de mera simpatia desprendida, na melhor das hipóteses.

Mas a língua inglesa prevalece, pode-se contra-argumentar. A língua de Shakespeare, a de Donne, a de Pope? Temo bem que não. Antes uma língua franca, sem dono, sem lei, sem profundidade, sem exemplos. Um mero instrumento estirado, maltratado e dado como fácil presa. Do último meio século ficam-lhe glórias de cultura popular e toda a gente pode apreciar de como são efémeras essas glórias. Ouve-se mais Mozart que Beatles. Trinta anos bastaram para fenecer a gloríola, duzentos leva a crescer a verdadeira glória.

Para percebermos o futuro inglês, temos de ver o que de profundo se está a fazer no Reino Unido.

A Inglaterra está na fase voltaireana. Não é por acaso que Voltaire é hoje em dia mais estudado em Inglaterra que em França se tal for possível. A Inglaterra não é revolucionária (ainda) ao contrário dos EUA. Voltaire é o defensor intolerante da tolerância, que não contesta o rei reinante, mas que gostava em suma de estar no seu lugar, o defensor da grandeza do homem, mas desprezando os seus sofrimentos; publicista, mais que filósofo. A maneira permanece na época voltaireana, o fundo inverte-se. Eis Voltaire. E eis a Inglaterra. Assim como Voltaire admira o Grande Século de Luís XIV e os seus paradigmas culturais de estilo estão nele, a Inglaterra ainda se gosta de ver como Shakespeariana.

A Inglaterra faz-se paladina de direitos do homem, mas sob um fundo de desprezo. Não quer fazer crescer a Europa, mas estirá-la. Quer a Turquia na Europa, um dia a Ásia Central, porque o seu projecto é apenas destrutivo, não construtivo. Por isso no fundo a sua política é consistente com os altermundialimos de pacotilha. Defende o mercado porque pouco mais tem que defender. Nem uma literatura, nem uma filosofia, nem uma arte. Em nome do amor abstracto à humanidade há no fundo um desprezo pela humanidade próxima, seja o pedinte em Russell Square, seja o vizinho europeu, seja o americano que politicamente admira, mas culturalmente despreza.

O problema é que depois de Voltaire vem Robespierre. Quando passará a Robespierre? Não sabemos, mas pelo menos o risco está lá. Burke está hoje em França, os germens da revolução no Reino Unido. Será por aí que explodirá um canto da Europa, se algum o tiver de fazer.

É que o país mais instável da Europa é o Reino Unido, o mais dado como exemplo, mas o menos sólido na sua construção. Forças centrífugas crescem sob o ponto de vista geográfico. Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte. Sob o ponto de vista social o desnível de rendimentos aumenta. Sob o ponto de vista étnico é a sociedade mais compartimentada, sem elemento unificador além do negócio e do interesse.

É deplorável ver um grande país, que podia ser um grande líder europeu, reduzir-se a isto. Mais lamentável que não o veja, que os outros não o vejam. A confiança na própria imunidade é o primeiro factor de risco. Quem se julga imune ao SIDA é quem mais corre risco de o apanhar. Não toma precauções. Quem se julga imune à guerra mais corre o perigo de nela entrar. Esta uma doença europeia. Mas quem se julga imune à revolução, à instabilidade social, e é este o caso inglês, mais atreito está a padecer desses males.

A Inglaterra tem todos os sintomas pré-revolucionários da França do século XVIII, mas não o seu prestígio. Corre o risco de padecer dos mesmos males, mas com menor glória e menor impacto. Admirando um modelo externo, no caso americano, como a França fez em relação a Inglaterra no século XVIII, desenvolvendo sob a capa intelectual, o que mais não é que actividade de publicista, na melhor das hipóteses, e de propagandista, na mais comum das ocorrências, expandindo-se à custa em grande medida de uma economia financeira, jogando no jogo político em vários tabuleiros, diversificando alianças, mas reduzindo a força de cada uma delas (no caso francês setecentista a Prússia, a Rússia, a Áustria, em parte a Espanha, no caso actual inglês, a tentativa de atracção dos países da Europa Central, e a Turquia, com interesses bem contraditórios entre si), respeitando as instituições tradicionais porque úteis mas sem as venerar e minando-as aos poucos, acreditando na eternidade do seu regime.

Tantos e mais outros os lugares paralelos que se encontram entre a França pré-revolucionária e a Inglaterra actual. A História profetiza-se sempre a benefício de inventário. Mas o inventário não é impedimento da herança. Apenas uma sua condição. Se o resultado final é positivo, só depois de fechadas as contas se pode saber. Mas que o vivo vai morrer e que deixa herança é facto certo. E que o que a compõe é previsível e realidade a ter em conta. Recusar a profecia porque pode errar é argumento que se pode aplicar a toda a acção humana. Vale por isso muito pouco. Recusar a profecia apenas porque se recusa a profecia é puro dogmatismo. E recusar uma profecia concreta só porque ela pode não se verificar é na melhor das hipóteses descurar uma possibilidade.

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