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Mário Soares: nas coisas da economia queria resultados

Em 1983, Mário Soares confiou completamente no seu ministro das Finanças, Ernâni Lopes, para negociar o programa de ajustamento com o FMI. O seu maior legado, em termos económicos, foi a adesão da Portugal à então CEE.

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Em 1983, Teodora Cardoso estava no Banco de Portugal e coube-lhe a missão de chefiar a missão que do lado português desenhou o programa de ajuda negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Nessa qualidade, a agora presidente do Conselho das Finanças Públicas mantinha contacto com o então ministro das Finanças, Ernâni Lopes (1942-2010), e com o seu secretário de Estado do Orçamento, Alípio Dias.

Nesses anos difíceis de bancarrota à porta, desemprego galopante e contestação social na rua, Teodora Cardoso não se encontrou uma única vez com o primeiro-ministro de então, Mário Soares, para debater as políticas de ajustamento.

"Não se metia nisso. Era uma questão para os economistas resolverem", diz ao Negócios Teodora Cardoso. "Percebia que era uma questão de vida ou morte, mas nas coisas da economia queria resultados e confiou completamente no seu ministro das Finanças", diz, elogiando a coragem de Mário Soares em avançar na altura com medidas pouco populares, que lhe custaram aliás o Governo, mas consideradas essenciais para estabilizar o país, e garantir o regresso aos mercados. Foi nessa época que Mário Soares fez um resumo da situação do país que ficou para a história e lhe valeu muitos ódios de estimação. "Os problemas económicos em Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto" resumia o primeiro-ministro, numa entrevista ao Diário de Notícias, em Maio de 1984.

O legado económico de Mário Soares tem quatro grandes pilares. Os dois pedidos de ajuda ao FMI, em 1976 e 1983, períodos em que foi primeiro-ministro, o seu apoio à revisão constitucional de 1982, promovida por um Governo liderado por Francisco Pinto Balsemão que permitiu a abertura do país à iniciativa privada ao abolir a irreversibilidade das nacionalizações, e a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), que o próprio solicitou, pela primeira vez, a 29 de Novembro de 1976. "Logo nesse ano ele traça balizas para a entrada na CEE e considera que isso implica mudanças na Constituição, onde está consagrado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações", recorda Vítor Ramalho, um seu amigo de longa data e secretário de Estado do Trabalho de um dos seus governos, ao Negócios.

Enquanto primeiro-ministro, Mário Soares fez contactos com banqueiros como Ricardo Salgado e Jardim Gonçalves, para que estes regressassem ao país após o 25 de Abril de 1974, porque, em seu entender, enfatiza Vítor Ramalho, "era inevitável a abertura de sectores económicos à iniciativa privada". "A concepção económica" que Soares tinha do país consubstanciava-se "nos três D: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver", acrescenta Vítor Ramalho. Na sua arquitectura mental, o primado era o da política. "Ele é um político alheio a números e à realidade económica, convicto de que com a política faz-se o que se quer. E cada vez mais, a política depende da economia", afirmou Henrique Medina Carreira, que foi ministro das Finanças do I Governo Constitucional chefiado por Mário Soares, entre 1976 e 1978, numa entrevista concedida ao Negócios, em Outubro de 2009.

Carlos Santos, num artigo publicado no site esquerda.net, em 29 de Janeiro de 2011, traça o retrato do acordo assinado em 1983 entre o Governo de Mário Soares e o FMI. "As medidas tomadas pelo Governo em acordo com o FMI assentaram em: desvalorização do escudo (12% em Junho mais uma desvalorização deslizante de 1% por mês); redução das taxas sobre as importações de 30% para 10% no OE para 84; aumento drástico dos preços de bens essenciais (incluindo pão, óleos vegetais, rações para animais, leite, açúcar, adubos e produtos petrolíferos, como refere a carta de intenções) e redução dos subsídios a esses produtos; congelamento de investimentos públicos; descida de salários reais na função pública ("servindo de exemplo para as negociações salariais do sector privado", como assinala a carta de intenções) e congelamento de admissões de trabalhadores; subida de impostos e imposição de um imposto especial sobre o rendimento – um corte de 28% no subsídio de Natal de 1983.

Em 1984, na revisão do acordo, o Governo português comprometeu-se com novos cortes no investimento; redução de salários reais; aumentos de preços, nomeadamente electricidade, transportes públicos, abastecimento de água, produtos petrolíferos, oleaginosas, açúcar; manutenção da desvalorização do escudo em 1% ao mês. No final de 84, o défice de transacções correntes tinha descido para 6%, mas as medidas acordadas com o FMI levaram, só em 1984, à queda do PIB em 1,4%, à descida dos salários reais em 10%; a uma inflação recorde de cerca de 30% e ao disparar do desemprego para cerca de 10%.

Para Mário Soares, a ajuda do FMI era o acessório para chegar ao essencial, a entrada do país na CEE. E é por isso que em Abril 1984, numa declaração publicada no Jornal de Notícias, sublinha: "quem vê, do estrangeiro, este esforço e a coragem com que estamos a aplicar as medidas impopulares, aprecia e louva o esforço feito por este Governo".

Portugal torna-se membro de pleno direito da CEE a 12 de Junho de 1985. O então Presidente da República (Ramalho Eanes) dissolve a Assembleia da República 15 dias depois, levando à queda do Governo de Mário Soares. Em Outubro desse ano, Aníbal Cavaco Silva chega a primeiro-ministro, e em 1987 o PSD obtém maioria absoluta, beneficiando com a onda de crescimento económico que se vive no país, impulsionada pelos fundos comunitários.

Mas, ainda assim, Soares sempre colocou o primado da política acima do da economia, recusando-se a ver a entrada na Europa comunitária como uma forma de obter financiamento para o país. "Os motivos que me levaram a requerer a adesão à CEE – que muitos portugueses na altura contestaram, mas que partidos maioritários na Assembleia da República apoiaram – não foram, ao contrário do que alguns ainda hoje julgam, essencialmente, económicos. Foram políticos e tiveram a ver com um grande desígnio para Portugal: a consolidação da democracia pluralista e civil, liberta há pouco tempo da tutela militar; e também o reconhecimento de que o ciclo imperial tinha terminado com a descolonização. A adesão à CEE aparecia-nos, assim, como o contraponto necessário para a reinserção de Portugal no contexto da unidade europeia, a fim de participar, de pleno direito, do seu dinamismo e progresso", afirmou o próprio num discurso proferido em 2005, de comemoração dos 20 anos da assinatura do tratado de adesão de Portugal à então CEE.
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