Notícia
Mário Soares. O político total
O antigo Presidente da República Mário Soares morreu este sábado, 7 de Janeiro, aos 92 anos.
Mário Soares marcou, definitivamente, o século XX português. E poucos políticos podem dizer o mesmo. Foi um político total. Daqueles que agora dificilmente encontramos. Concentrado, às vezes imprevisível, emocional, marcou uma era. Foi tudo o que poderia ter sido.
Em 25 de Abril de 1976, Mário Soares, vencedor das eleições legislativas, dizia: "não faremos alianças, nem a esquerda nem a direita. Se não assegurarmos a maioria, entraremos na oposição". A capa da revista "Século Ilustrado", quatro dias depois, apresentava a face de Soares a beber um copo de água, com o título: "E agora?". O Partido Socialista ganhara com quase 35% dos votos. Sem maioria. A resposta à questão era fácil, como se veria poucos dias depois: Soares iria ser nomeado primeiro-ministro, a primeira vez que tal sucederia. Era o culminar de um destino traçado desde há muito, talvez ainda antes do 25 de Abril de 1974, quando era uma das principais figuras da oposição e o regime do Estado Novo ainda dava mostras de estar para durar.
Ultrapassada a crise do Verão Quente, restabelecido o sistema democrático civil, com uma Constituição aprovada, Mário Soares tornava-se o primeiro primeiro-ministro eleito da democracia portuguesa. Um sonho cumpria-se. Afinal, como recordava a filha, Isabel Soares, a Anabela Mota Ribeiro, Mário Soares "É uma força da natureza. Tem uma alegria de viver…Isso sempre nos transmitiu: o gosto de viver, o tirar o lado positivo de tudo (mesmo da adversidade, das prisões). Escrevia-nos cartas sempre positivas". Lutador e optimista. Mostrou isso no comício da Fonte Luminosa, no célebre debate televisivo com Álvaro Cunhal, na forma como ganhou a Freitas do Amaral nas presidenciais depois de ter de derrotar o seu velho amigo de luta, Salgado Zenha.
Mário Alberto Nobre Lopes Soares, nascido em Lisboa a 7 de Dezembro de 1924, fermentara a sua vida nos núcleos oposicionistas, onde se falava de política numa altura em que a unanimidade nacional e o discurso único afastavam todos os que pensavam de maneira diferente. Filho de João Lopes Soares, proprietário do emblemático Colégio Moderno e antigo ministro das Colónias na I República, acabaria por se licenciar em Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa e, depois, em Direito, na FDL. Estudava e animava os encontros oposicionistas juvenis, antes de se tornar se tornar advogado.
Foi criando uma imagem autónoma da oposição hegemónica do Partido Comunista Português. Preso e deportado para São Tomé e Príncipe entre 1968 e 1969, acabaria por se exilar e ir dar aulas em França, nas universidades de Vincennes e Rennes. Aí consolida a sua imagem de oposicionista, sustentada também pelo apoio da Internacional Socialista, que lhe permitem encontrar os apoios para fundar o PS em 19 de Abril de 1973 em Bad-Munstercifel, na então República Federal Alemã.
A sua carreira política empolga-se ainda mais com o 25 de Abril de 1974. Secretário-geral do PS, é vice-presidente da Internacional Socialista e ocupa lugares determinantes no Governo, de ministro dos Negócios Estrangeiros (no I e II Governos provisórios) a primeiro-ministro (entre 1976 e 1978 e entre 1983 e 1985). E é Presidente da República entre 1986 e 1996. Casado com a já falecida Maria de Jesus Barroso, o seu empenho político nunca desapareceu até ao fim. Foi mesmo apoiante declarado de Sampaio da Nóvoa em 2016. Nos últimos anos foi um crítico contundente de Cavaco Silva, político que nunca perdoou. Afinal, considerava-o um "júnior", longe do príncipe que ele próprio era.
Após os difíceis anos da oposição e do exílio político, Mário Soares regressou a Portugal logo após o 25 de Abril. Iniciava-se aí a segunda fase da sua intensa vida política, que teria uma fase idílica quando surgiu ao lado de Álvaro Cunhal, numa altura em que muitos sonhavam que Portugal poderia ser um exemplo revolucionário para a Europa. Mas rapidamente as águas iriam separar-se. Após o 11 de Março de 1975 e as primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, a radicalização seria constante. Primeiro Mário Soares teria de combater a corrente mais à esquerda dentro do PS e depois tornou-se o pólo da luta contra o PCP e as correntes terceiro-mundistas que tinham um poder enorme nas Forças Armadas.
O combate aos governos de Vasco Gonçalves mostrou a sua fibra política. Mais uma vez Mário Soares era a imagem e a voz da oposição. O PS era, na altura, o maior partido português nas urnas e nas ruas isso via-se também. Com o caso "República" (jornal afecto aos socialistas, dirigido por um velho amigo de Soares, Raul Rego) e o "documento dos Nove", encontrou forças morais para o combate.
Quando Soares e o PS saem do Governo Provisório de Vasco Gonçalves em Junho de 1975 os dados estão lançados. E tudo desembocará no 25 de Novembro. À normalização que se seguiu junta-se a eleição do general Ramalho Eanes para Presidente da República e a nomeação de Soares para primeiro-ministro em Julho de 1976. Mas as relações com Eanes haveriam de se degradar e Soares, não conseguindo evitar o apoio do resto da direcção do PS a Eanes (na reeleição deste em 1980), auto-suspende-se das funções de secretário-geral do PS. São uns últimos meses de 1980 conturbados onde Soares parece perder o controlo do PS.
Voltaria mais tarde ao poder, como primeiro-ministro do Governo do "bloco central" (com o PSD), que viria a concretizar o seu grande projecto político: a adesão à CEE em Junho de 1985. Mas vivem-se tempos de austeridade e a presença do FMI não ajuda. Em 6 de Outubro de 1985 o PS tem a sua maior derrota eleitoral, numa altura em que Soares já tinha anunciado que se iria candidatar a Presidente da República. À segunda volta consegue bater Freitas do Amaral, numas eleições muito renhidas, numa fase em que se começa a desenhar um novo ciclo: o "cavaquismo", com a chegada ao poder no PSD de Aníbal Cavaco Silva, o responsável pelo colapso do "bloco central". As eleições de 1987 que convoca servem para fazer implodir o projecto político de Eanes, o PRD, mas acabam por dar a maioria absoluta. Numa primeira fase Soares e Cavaco vigiam-se e seguem uma política de estabilidade política. Mas acabariam nos lados inversos da barricada política.
Soares inaugura na época as "Presidências Abertas", levando o poder para as capitais de distrito, uma forma de aproximar o poder das regiões. Soares, apoiado também pelo PSD, é reeleito PR em 1991. Vivem-se a seguir anos de difícil coabitação entre Belém e São Bento. A crise económica crescente e o protesto do "buzinão" na Ponte 25 de Abril, abre uma frente de batalha entre Soares e Cavaco. Soares, entretanto, nunca deixou de dar atenção ao que se passava no "seu" PS, desde um secretário-geral que manifestamente lhe desagradava, Vítor Constâncio, a António Guterres. Com a vitória do PS nas legislativas do PS consegue um presidente, um Governo e uma maioria homogéneos. E, na presidência, é substituído por outro socialista em 1996 (Jorge Sampaio).
Deixando a política activa, Soares dedica-se à presidência da Fundação com o mesmo nome, de onde assiste, sempre interveniente, às evoluções da vida política portuguesa, com Cavaco Silva em Belém e um período de mutação no Governo, com a sucessiva ocupação do poder por Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates e Passos Coelho. E continua a intervir sempre na vida política portuguesa, como foi evidente o seu apoio a Sampaio da Nóvoa nas presidenciais ou as suas visitas a Sócrates na cadeia de Évora. A morte de Maria Barroso acaba por ser um duplo golpe numa vida de décadas.
Homem de virtudes e defeitos, Mário Soares foi objecto de uma longa biografia de Joaquim Vieira, "Mário Soares – uma vida", onde o próprio Soares recorda alguns episódios da sua vida, como por exemplo o regresso a Portugal, logo após a Revolução: "Tinha, quando muito, a ambição de poder vir a ser um deputado do PS, mas na oposição. (...) Surpreendi-me muitíssimo quando cheguei a Lisboa e fiz o primeiro discurso às massas, na varanda de Santa Apolónia. (...) Jamais pensava ter aí o meu primeiro banho de multidão." (...) "Percebi o cenário: Cunhal entre um soldado e um marinheiro, em cima de um tanque, era algo que lembrava Lenine." Tal como recordou as alianças que fez com o embaixador americano Frank Carlucci para conter a "tentação comunista" de 1975: "O Carlucci auxiliou-nos por via dos sindicatos americanos (...), que os comunistas odiavam, não sei porquê." [...] "Se me vier um gajo qualquer, por aquela porta ou por outra porta qualquer, falar-me de coisas de dinheiro, eu mando-o logo à merda. É a minha maneira de ser." Frontal, como sempre.
De Salgado Zenha e Manuel Alegre, com quem se desentendeu por causas de diferentes eleições presidenciais, também foi claro: "Pensei que tinha ganho todos os debates [das presidenciais de 1986] menos o que tive com o Zenha, porque ele deu-me um murro no estômago, que nunca esperava de um tipo que era meu irmão." (...) "Não me sinto bem a dizer mal de um gajo de quem fui amigo durante 40 anos. Nunca mais vou ter uma relação específica com o Alegre."
Joaquim Vieira lembrou, mais tarde, a "ideia maçadora" de Soares conviver com a morte: "Faz-me contar aquela história que se contava do Roberto Marinho, da TV Globo, que nunca dizia ‘quando eu morrer façam isto'; ele dizia ‘se eu morrer façam isto'. Com o Soares é um bocado a mesma coisa. Ele acredita que ainda tem um papel a desempenhar, uma missão cívica. Aos 88 anos já não estará a pensar candidatar-se a nada, mas será fazer coisas como a que fez o ano passado, em que encabeçou aquele abaixo-assinado que pedia a demissão do Governo."
Mas, no fundo, Soares chegou à política, viu e venceu. Criou amigos e inimigos. Mas nunca deixou de ser frontal e distinto. Poderia ter sido outra coisa, mas não foi. Como disse Isabel Soares a Anabela Mota Ribeiro: "Falhar seria não ter lutado por aquilo que lutou, não ter conseguido aquilo que conseguiu para o país, para o Partido Socialista. Ele está de bem com a vida por causa disso. Tem mágoa por não ter escrito mais. De não ter feito o romance que gostaria de ter feito. Gostaria de ter sido jornalista e escritor". Foi político. Até ao último dia.