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Catalunha independentista? Um vulcão há muito em actividade

Apesar da proximidade de 1 de Outubro, dia marcado para a realização do referendo independentista catalão, nesta altura é impossível prever se a consulta popular vai, ou não, avante. As autoridades políticas catalãs asseguram que sim. O Governo central de Mariano Rajoy afiança que não. Aconteça o que acontecer, a única certeza é que o histórico e arreigado secessionismo catalão não deixará parar o processo independentista.

Albert Gea/Reuters
30 de Setembro de 2017 às 10:00
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O vulcão do independentismo catalão expeliu o magma da confrontação entre soberanistas e integralistas. Esta erupção vulcânica independentista representa o momento de maior actividade separatista que a Catalunha viveu em quase 100 anos.

Adormecido ou com períodos de intensa actividade, o independentismo catalão está longe de ser um epifenómeno. É uma característica identitária profundamente enraizada na população catalã e que, com maior ou menor intensidade, dependendo também dos circunstancialismos de época enunciados por Ortega y Gasset, de tempos a tempos surge acompanhada de ímpetos secessionistas.

Historicamente foram quatro os momentos principais de sublevação da Catalunha contra o centralismo de Castela e Madrid (1640, 1873, 1931 e 1934). Até a Restauração da Independência portuguesa de 1 de Dezembro de 1640 se deveu, em boa medida, a uma sublevação popular na Catalunha. A "revolta dos ceifeiros" contra o exército real levou o reino de Espanha, então já envolvido na longa Guerra dos Trinta Anos contra a França de Richelieu, a concentrar esforços para conter a rebelião dos catalães, abrindo o flanco para que os portugueses restabelecessem a independência. Só depois de findo o conflito religioso, a Catalunha regressou ao domínio de Felipe IV.

Nação sem Estado

Se é indiscutível o predomínio do reino de Castela sobre a Catalunha, a hipotética existência, ao longo dos séculos, de uma região catalã independente continua a ser foco de discórdia.

Uns legitimam a tese de que a Catalunha foi independente e apontam a derrota de Barcelona face às tropas borbónicas, em 1714, durante a Guerra da Sucessão, como o momento em que o condado catalão perdeu capacidade de autogoverno. Outros sustentam que nunca houve uma Catalunha soberana. "A Catalunha nunca foi uma nação independente", afiança Nuno Garoupa para quem tal não passa de "mitologia histórica". Porém, para este professor catedrático de Direito na Universidade do Texas A&M, esta questão não serve de argumento para impelir uma Catalunha independente relativamente ao reino de Espanha: "Sendo historicamente verdade, não vejo em que é que essa observação aumenta ou reduz a legitimidade secessionista", diz.

Muitos historiadores apontam várias causas impulsionadoras do separatismo catalão. Disputas entre monarquistas e republicanos e entre direita e esquerda terão também, em diferentes momentos, servido de catalisador desses movimentos soberanistas. As proclamações das repúblicas catalãs, nos séculos XIX e XX, são disso exemplo. É precisamente no século XIX que nasce uma "consciência de catalanismo político", aponta José Adelino Maltez, professor catedrático de Ciência Política no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).


Curiosamente, o nacionalismo catalão é também criado pela força centrífuga (vinda de Madrid) exercida pelo próprio nascimento da identidade nacional espanhola, nos séculos XIX e XX. Já nessa época o superior desenvolvimento industrial catalão contrastava com o poderio político madrileno. À histórica vitimização de uma Catalunha dominada passa a acrescer a insatisfação provocada pelas transferências feitas pela periferia mais rica para o centro mais pobre.

Mas se a História nos diz que a ideia de Estado-nação catalão nasceu apenas no século XIX, com o fim da brevíssima primeira república e restauração da monarquia borbónica, é indesmentível que o soberanismo catalão tem raízes nos tempos medievais. Contudo, José Adelino Maltez prefere "não comparar os tempos medievais com os tempos de hoje" porque nestes séculos mudaram quase todos os pressupostos. O politólogo opta por olhar para a realidade actual e notar que a Catalunha é "uma nação sem Estado".

Catalunha como nação

No passado recente, a deriva independentista catalã intensifica-se a partir do início dos anos 2000, culminando, em 2006, com a aprovação do Estatuto que passou a regular o funcionamento do governo autonómico catalão (Generalitat).

Um dos artigos deste Estatuto proclama que "a Catalunha é uma nação", oficializando uma espécie de caixa de Pandora legitimadora do nacionalismo catalão e que, de alguma forma, contraria o disposto no artigo 2.º da Constituição de Espanha (1978), que apenas contempla uma nação: "A Constituição fundamenta-se na unidade indissolúvel da nação espanhola."
A mobilização do povo catalão tem crescido à medida que o processo soberanista avança. As 'ruas' têm respondido contra a forma como as autoridades centrais estão a agir para neutralizar a realização do referendo popular marcado para este domingo. Neste dia 1 de Outubro, o povo descerá seguramente às ruas.
A mobilização do povo catalão tem crescido à medida que o processo soberanista avança. As "ruas" têm respondido contra a forma como as autoridades centrais estão a agir para neutralizar a realização do referendo popular marcado para este domingo. Neste dia 1 de Outubro, o povo descerá seguramente às ruas. Albert Gea/Reuters
Esta contradição expõe o permanente embate entre o direito à autodeterminação dos povos, inaugurado pela Revolução Francesa e consagrado na Carta das Nações Unidas, e o respeito pela legalidade democrática instituída por uma Constituição espanhola que exclui qualquer tipo de via soberanista unilateral.

Favorável ao "direito à autodeterminação", Adelino Maltez, contundente, defende que "a ideia de que quem faz os Estados são os constitucionalistas é uma treta. São os povos que fazem os Estados." Já Nuno Garoupa tem uma abordagem mais legalista ao considerar que "a carta da ONU não se aplica" ao caso catalão e que "a solução terá de ser encontrada no enquadramento constitucional espanhol e europeu".

Em 2012, o Tribunal Constitucional (TC) espanhol tenta emendar a mão declarando que o conceito de "Catalunha como nação" carece de "eficácia jurídica". Todavia, de pouco serviu porque, dois anos antes, em 2010, o economista Artur Mas (CiU, coligação de partidos nacionalistas) roçara a maioria absoluta e tornara-se presidente da Generalitat. A chegada de Mas à presidência do governo autonómico deu o mote para o regresso em força do catalanismo soberanista.

Mas acelera processo soberanista

O difícil relacionamento entre Mas e o já então primeiro-ministro Mariano Rajoy culmina, em 2012, com o fim do diálogo entre Madrid e Barcelona. A Diada (dia nacional da Catalunha, em 11 de Setembro) desse ano, a mais participada de sempre, incentiva o presidente da Generalitat a convocar eleições antecipadas. O objectivo passa por legitimar, através das urnas, o "processo de autodeterminação".

O acto eleitoral não corre de feição a Artur Mas, o que não o demove de prosseguir a sua agenda. A Generalitat marca um referendo independentista para 9 de Novembro de 2014 (9-N) que, após inconstitucionalidade decretada pelo TC, acaba por se realizar sob a forma de consulta popular não vinculativa.

O processo provoca fissuras nos independentistas catalães. Há novas eleições antecipadas, mas a coligação soberanista de Mas (Juntos pelo Sim) fica aquém da maioria absoluta e é obrigada a aliar-se aos radicais da Candidatura de Unidade Popular (CUP, herdeiros do anarquismo), que assumem preponderância no rumo separatista. Só que apesar de garantir uma posição maioritária no parlamento regional, a aliança independentista não soma sequer 50% dos votos.

Já em 2017 e com a Generalitat liderada pelo jornalista Carles Puigdemont (oriundo da Convergência Democrática da Catalunha, a força de nacionalistas de direita de Artur Mas, que integra o Juntos pelo Sim), é aprovado um novo referendo sobre a independência para 1 de Outubro (1-O).

Legalidade vs. Ruptura

Enquanto Artur Mas, e depois Puigdemont, escolhe a via da ruptura, Mariano Rajoy opta pela via do imobilismo. Uma e outra alimentam-se mutuamente.

A espiral de confrontação ganha força, em Setembro último, quando a maioria Juntos pelo Sim-CUP aprova as leis do referendo e da desconexão. A coberto da legalidade e continuando a rejeitar o diálogo político, Madrid resguarda-se na Constituição e no TC, cujos instrumentos permitem impedir, inclusive com recurso à força, a realização de um referendo que, à luz da lei, é "ilegal".


Mariano Rajoy mantém que o referendo não vai realizar-se. Puigdemont persiste apesar de sobre ele pender a ameaça de prisão. "Procuram ambos legitimidade no confronto", salienta Nuno Garoupa que aponta a falta de legitimidade eleitoral de Rajoy e Puigdemont.

Entretanto, as autoridades centrais tomaram o controlo sobre as finanças da Generalitat e detiveram dirigentes catalães envolvidos na organização do 1-O. Ordenaram ainda o encerramento dos locais previstos para a colocação de assembleias de voto. Sem recuo possível para não minar a unidade nacionalista, os independentistas, liderados pela CUP, prometem piquetes para ocupar as assembleias de voto. O choque torna-se inevitável.

Ponto sem volta?

É nesse choque que aposta o campo nacionalista. A realização de um referendo ilegal não garante consequências jurídicas, mas a confrontação terá seguramente resultados políticos. É clara a expectativa de que uma acção coerciva de Madrid mobilize os independentistas. As sondagens apontam nesse sentido. Antes de Mas e Rajoy governarem, eram menos de 15% os catalães favoráveis à secessão. Agora serão mais de 50%. No domingo, as câmaras vão incidir na Catalunha. E se houver violência, o lado soberanista retirará dividendos: as imagens valem por mil palavras.

Neste contexto ganha força o cenário de declaração unilateral de independência, abertamente defendido pela CUP. "Tudo aponta nesse sentido", antevê Adelino Maltez. As consequências desse acto serão graves, diz Nuno Garoupa que avisa que a Catalunha ficará "imediatamente fora da União Europeia (UE)". O que leva Maltez a constatar que "numa democracia europeia devia prevalecer o direito à constituição de Estados", uma vez que "a UE sempre assumiu o princípio de uma organização onde se podia dividir para unificar".

Com tanta incerteza, o que parece garantido é que, aconteça o que acontecer, o processo não ficará por aqui. E a lava soberanista continuará a fervilhar.




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