A famosa marca La Laitère, da Nestlé, chega agora a Portugal como franchise da Longa Vida. A forte campanha de publicidade inclui anúncios televisivos e em mupis, utilizando, como já acontecia na origem, o quadro do mesmo nome de Vermeer.

Pintado em 1632, o quadro do pintor flamengo mostra uma mulher pousando como leiteira num quarto interior e vertendo o leite dum jarro para outra vasilha. Em cima da mesa há pão inteiro e pão cortado.

A marca e a campanha apropriam-se directamente do quadro de Vermeer, da própria obra de arte. Não é preciso o observador conhecer o quadro ou o nome do autor. A referência intertextual valida-se por se saber, pelo anúncio de TV, que se recorre a uma obra antiga, uma imagem parada, um tempo de outro tempo, para transformar esse referente do antigamente num produto do nosso tempo, da nossa indústria, dos nossos supermercados, de marcas que milhões conhecem (Nestlé e Longa Vida).

Além da sua qualidade estética (ou por causa dela), a cena do quadro, transformada em imagens nossas, actuais, é hoje muito evocativa, representando uma suposta simplicidade de outros tempos: o quadro respira a naturalidade dos produtos da sociedade rural, o artesanato, a manufactura. A pintura empresta essas características à realidade contrária, implícita aos produtos: complexidade dos tempos actuais, carácter artificial dos produtos da sociedade urbana, indústria, produção em série.

No mundo actual, não há leiteiras, como a que levava o leite a casa dos meus pais nos anos ’60. A distância entre o consumidor e a vaca é imensa. Na verdade, a vaca não existe na comunicação da maioria dos lacticínios, incluindo estes. A indústria prefere relevar na publicidade o carácter industrial, a marca, a embalagem, os sabores, a higiene, a saúde e bem-estar. A leiteira de Vermeer remete para um passado mítico, que o consumidor imagina, mas como um mito: faltam na imaginação as doenças, a falta de higiene, de conservação, de mistura de sabores, sobrando sonhos de natureza, sabor autêntico e à antiga, uma antiguidade no tempo como garantia de qualidade comprovada.

O mito, tal como o descrevo, está revelado por inteiro na promoção do novo produto: A Leiteira surge no mercado “porque há valores que o tempo não altera e não se esquecem” e promete ao consumidor o regresso “ao sabor esquecido da sua infância”. É irrelevante que na “infância” do consumidor não houvesse sabores semelhantes e seguramente não houvesse os sabores propostos pela Leiteira, porque estes sabores são novos e a marca não é antiga em Portugal, pelo contrário, é a mais recente do mercado.

Apropriando-se do quadro de Vermeer e criando à sua volta um mito — uma narrativa ficcional auto-suficiente —, a campanha inventa algo novo, “o genuíno” invocado no slogan, sem qualquer relação comprovada com o passado, próximo ou remoto, e sem definição concreta. Para a invenção do mito, contribuiu, porém, algo de muito verdadeiro e poderoso: o quadro de Vermeer, um ícone da cultura ocidental que povoa o espírito dos que o conhecem, mesmo que vagamente, ou o subconsciente dos que julgam nunca o ter visto. A referência intertextual apropria-se, assim, do quadro na sua totalidade: da imagem da leiteira de antigamente e da autoridade dum Vermeer como ícone e obra de arte.

Post-scriptum: um leitor chamou-me a atenção para o facto de a campanha do Sapo baseada no Ambrósio e sua senhora [nº326] ter, não só parodiado o primeiro anúncio televisivo da Ferrero Rocher, mas também copiado de perto um filme da BMW realizada por Guy Ritchie e protagonizado por Madonna (a outra senhora) e Clive Owen (o outro Ambrósio). Quem quiser ver a Madonna aos tombos no carro e cair no tapete tal e qual como copiaram os publicitários do Sapo na sua Senhora de verde pode seguir o conselho do leitor e visitar http://www.youtube.com/watch?v=8tDg1YKp8M0&hl=pt-PT --- ect@netcabo.pt