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[540.] Ferrero Rocher, Seaside, TMN, Corte Inglés

"Ambrósio, este Natal quero oferecer algo precioso", diz a Senhora ao motorista. Esta Senhora e este Ambrósio envelheceram muito desde o primeiro e fantástico anúncio de Ferrero Rocher que protagonizaram juntos, um reclame que é o supra-sumo do Kitsch e no qual se vislumbrava uma titilação erótica na relação, mas as personagens permanecem clássicos da publicidade: se raramente as personagens publicitárias aguentam mais do que uns meses, este casal improvável já nos visita anualmente há mais de uma década.

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O anúncio vale pouco para além da revisitação nostálgica, mas a frase que cito serve-me para introduzir a forma gulosa como a publicidade aproveita uma característica essencial do Natal: a oferta de presentes. Neste período, uma das essências da vida social — o dom ou dádiva — manifesta-se em todo o seu esplendor. Dar, receber e retribuir são um facto social total de sempre e não há espírito materialista que o iluda. Da oferta de uns copos aos amigos à oferta protocolar de presentes entre chefes de Estado, da esmola a um pedinte à solidariedade organizada em grandes organizações não-governamentais, o dom ou dádiva está em toda a parte.

O espírito materialista não vence o dom, mas insinua-se nele, aproveita a nossa necessidade de dar e retribuir. E o Natal é a melhor altura para o consumismo excitar a nossa vontade ou a nossa obrigação de dar. A publicidade adora o Natal, porque é a época de maior consumo privado, de mais publicidade, e porque lhe permite iludir o seu carácter comercial. Note-se que a Senhora diz ao Ambrósio que "quer oferecer algo", não diz que quer comprar algo. A palavra comprar desaparece como que por magia, a magia do dom na época natalícia.

"Este Natal, a Seaside dá-lhe descontos até 30%": cá está a palavra dar. Oculta-se que é preciso comprar para ter os descontos, porque dar é o que está a dar no Natal. Esta publicidade nunca diz que se compra, que se gasta dinheiro, acentua apenas o dar e o receber. A TMN diz ter "o melhor do Natal" e ilustra-o com um anúncio em que se obtém Internet ilimitada até 6 de Janeiro de 2014 gastando 129,90 euros num telemóvel LG. E qual o slogan em letras gigantescas no topo dos reclames? "Receber". Recebe-se a Internet ilimitada por um período reduzido comprando aquele smartphone e aderindo obrigatoriamente ao serviço "it light" da TMN. A palavra "receber" tem no Natal a mesma magia da palavra "dar", porque é o contraponto do dar no facto social do dom.

Nenhum anúncio exprime tão bem esta apropriação do facto social total do dom como os da campanha do Corte Inglés. Diz ele: "No Natal todos merecemos um presente. No El Corte Inglés, gostamos de oferecer e gostamos do Natal." A primeira frase sugere subrepticiamente ao observador a obrigação de dar, própria do dom: se todos merecemos um presente, todos os outros o merecem e, portanto, temos de dar. Com uma desfaçatez retórica extraordinária, a frase seguinte — "No El Corte Inglés, gostamos de dar" — não só ilude a necessidade de se comprar para se dar como consegue transformar as compras que se façam no Corte Inglés em ofertas do próprio Corte Inglés.

O texto do reclame televisivo faz os possíveis para fazer desaparecer o facto da compra de presentes, apresentando-a como parte da troca própria do dom: eu dou-te, tu dás-me. Na frase que diz que o presente é "tão caloroso como todos os abraços recebidos" juntam-se harmoniosamente o carácter não comercial do dom ("os abraços recebidos") com o seu carácter material no âmbito da actividade económica (um presente comprado). O mesmo sucede quando as imagens mostram dois namorados trocando presentes: o amor dado e recebido materializa-se em presentes.

Se este, como tantos outros anúncios, oculta o dinheiro e a compra, é, porém, de uma sinceridade absoluta na sua última frase: no Corte Inglés gostam do Natal. Claro que não é por nos oferecerem o que quer que seja, mas pelo que lá poderemos gastar. Mas esta última parte é melhor não dizer, porque é Natal.

eduardocintratorres@gmail.com



 

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