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Da Turquia, num sussurro que se quer voz

“Isto já não tem nada a ver com árvores! Tem a ver com a liberdade do povo laico da Turquia”, diz ao Negócios o turco Yilmaz, que vive em Istambul. “Por favor, partilhe isto com o povo português. Mas mantenha o meu nome em segredo”.

03 de Junho de 2013 às 06:11
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“Os portugueses que estão em Istambul estão todos bem. Estamos em contacto através do Facebook e a partilhar entre nós toda a informação que temos”. As palavras são de Rui [nome fictício], um português que se encontra na Turquia em trabalho e que tem vivido os últimos dias com as horas trocadas, pouco sono e um olhar atento.

 

“Neste momento”, conta, “a informação é muito confusa e há muita contra-informação a ser partilhada nas redes sociais por apoiantes do Governo turco”. Mas há coisas de que tem a certeza e pede que sejam divulgadas: “O que sei com certeza absoluta é isto: ontem [sábado, 1 de Junho] houve confrontos maioritariamente na zona de Besiktas [em Istambul]. Entretanto, a polícia recuou e hoje de manhã os manifestantes retomaram a praça de Taksim e o Parque Gezi, adjacente à praça. Foram eles que estiveram a limpar o parque e toda a zona de Taksim e durante o dia as coisas estiveram relativamente calmas”.

 
"Sempre houve estas manifestações, mas eram pacíficas"

Isabel está em Portugal, regressada recentemente da Turquia, onde esteve a trabalhar. E conta que todos os fins-de-semana “via alguma manifestação” em Taksim. “Sempre com polícia de choque. Só que nunca tinha visto exaltarem-se como agora”. Sobre se se sentiu insegura, responde que não. “As 'manifs' eram controladas. Sempre houve estas manifestações em Taksim, mas eram pacíficas. Os turistas passavam e tiravam fotos. Era normal, sempre com polícia de choque presente”, diz ao Negócios.

No entanto, a aparente tranquilidade não se manteve. “Ao cair da noite de hoje, os confrontos recomeçaram na zona de Besiktas. E continuam neste momento, que são 3 da manhã aqui [1h em Lisboa]. Há cerca de uma hora, a polícia atacou com gás lacrimogéneo a mesquita de Dolmabahçe, em Besiktas, que estava a ser utilizada como um hospital improvisado”.

 

“Um amigo meu viu manifestantes a atacarem uma ambulância que descia a avenida Barbaros em direcção a Besiktas e só percebeu o que estava a acontecer quando de dentro da ambulância começaram a ser disparadas balas de borracha e gás. A polícia está a utilizar ambulâncias para transportar munições”, conta.

 

Rui não é o único a relatar a violência extrema que se vive na Turquia. A socióloga e antropóloga turca Defne Suman, actualmente a residir nos EUA, onde é instrutora de ioga, escreve um texto no seu blog que está a tornar-se viral e a ser partilhado em todas as redes sociais. “O que está a passar-se em Istambul?”, lança. E responde.

 

“Aos meus amigos que vivem fora da Turquia, escrevo para lhes dizer o que tem estado a suceder em Istambul nos últimos cinco dias”, começa o texto publicado no sábado, 1 de Junho. Defne Suman diz que é seu dever escrever sobre o que se passa, “já que praticamente todos os meios de comunicação estão bloqueados pelo governo, pelo que o passa-palavra e a Internet são as únicas vias que nos restam para explicarmos o que se passa e pedirmos ajuda e apoio”.

 

Já não são apenas as árvores que os movem…

 

“Há quatro dias, um grupo de pessoas que não pertencem a qualquer organização ou ideologia juntaram-se no parque de Gezi, em Istambul. Entre eles estavam muitos dos meus amigos e alunos. A razão era muito simples: evitar e protestar contra a futura demolição do parque, cujo objectivo era construir mais um centro comercial no centro da cidade”.

 

E prossegue: “O derrube das árvores estava previsto para quinta-feira de manhã. Muitas pessoas acorreram [na quarta-feira à noite] ao parque, com cobertores, com livros e com os filhos. Armaram tendas e ali passaram a noite, debaixo das árvores. Ao amanhecer, quando os ‘bulldozers’ começaram a derrubar as árvores centenárias, eles levantaram-se e enfrentaram as máquinas para travarem a operação. Foi apenas o que fizeram: ficaram em frente às máquinas”.

 

Diz Defne Suman que “nenhum jornal, nenhum canal de televisão, apareceu para fazer a cobertura dos protestos”. “Foi uma censura total por parte dos meios de comunicação social”, acusa. Mas houve quem não faltasse: “a polícia chegou com os seus canhões de água e gás pimenta, perseguindo a multidão no parque”.

 

A autora do livro “Mavi Orman” conta que, nesse mesmo dia à tarde, o número de manifestantes se multiplicou. Bem como as forças policiais em redor do parque. “Enquanto isso, o governo local de Istambul fechou todos os acessos à praça Taksim, onde está situado o parque Gezi. O metro foi encerrado, os ‘ferries’ foram suspensos e as estradas foram bloqueadas”.

 

Mas a multidão continuou a crescer. Chegavam a pé, de todos os cantos de Istambul. “Pessoas de classes sociais diferentes, de ideologias diferentes, de religiões diferentes. Juntaram-se todas para evitarem a demolição de algo muito mais significativo do que o parque: o direito a viverem como cidadãos honrados deste país”, escreve Defne Suman.

 

“Estas pessoas são minhas amigas”

 

A socióloga relata ainda como estas pessoas foram perseguidas e atacadas com gás pimenta e gás lacrimogéneo pela polícia. Duas delas foram apanhadas pelos tanques e morreram. Uma mulher jovem, amiga de Defne Suman, foi ferida por uma lata de gás lacrimogéneo. “Após três horas de intervenção cirúrgica, ainda está nos cuidados intensivos em estado crítico. Enquanto escrevo isto, não sei se ela recuperará. Este texto é dedicado a ela”, sublinha.

 

“Estas pessoas são minhas amigas. São meus alunos, são meus familiares. Não têm ‘intenções ocultas’, como o governo gosta de categorizar. Os seus motivos são muito claros, estão à vista. Todo o país está a ser vendido às corporações multinacionais pelo governo para se construírem mais centros comerciais, mais condomínios luxuosos, mais auto-estradas, barragens e centrais nucleares”.

 

“As pessoas que marcham até ao centro de Istambul estão a exigir o seu direito de viverem livremente e de reclamarem justiça, protecção e respeito por parte do Estado. Exigem ser participantes da tomada de decisões sobre a cidade onde vivem”, acrescenta.

 

Enquanto isso, na TV… Miss Turquia, gatos e pinguins

 

Conta Suman que o que os manifestantes receberam em troca foi uma força de repressão extrema. Houve quem cegasse com o gás lacrimogéneo. Mas, ainda assim, muitos continuam a dirigir-se para o centro da cidade. Centenas de milhares somaram-se aos que já lá estavam, cruzando a ponte do Bósforo, a pé, para apoiarem as gentes de Taksim. E, uma vez mais, acusa a socióloga, os meios de comunicação social falharam a cobertura. “Nenhum jornal ou canal de TV apareceu para informar sobre os acontecimentos. Estavam ocupados a transmitirem notícias sobre a Miss Turquia e “o gato mais estranho do mundo”.

 

Rui confirma. “Os media turcos estão sob forte censura e há apenas um canal de televisao a transmitir o que se passa. Ontem, durante os confrontos à noite em Besiktas a CNN internacional estava em directo do local e a CNN turca estava a passar um documentário sobre pinguins”.

 

Confronto, fuga e ajuda

 

“A polícia continuou a perseguir e a lançar gás pimenta, a ponto de cães e gatos de rua terem morrido envenenados”, diz a autora do blog. E assim é. Por entre os milhares de fotos que surgem nas páginas do Facebook, podem ver-se também cães e gatos em fuga. Um atropelo de pernas e patas. Choro, raiva, convulsão. E união: “Escolas, hospitais e até hotéis de cinco estrelas em Tajsim abriram as suas portas para receberem os feridos. Os médicos enchem as salas de aulas e quartos de hotel para prestarem assistência. Alguns oficiais de polícia negaram-se a reprimir gente inocente e abandonaram aos seus postos”, conta ainda Defne Suman. Nalgumas fotos que abundam no Facebook e Twitter, também isso é visível. Polícias que largam as armas e “passam para o outro lado”.

 

Apesar de, em redor da praça, ter sido cortado o acesso à Internet e às redes 3G, muitos residentes e empresas estão a providenciar acesso gratuito às pessoas que estão nas ruas. Há restaurantes que oferecem alimentos e água, escreve a socióloga turca. E há quem disponibilize imagens em directo, na esperança de serem partilhadas em todo o mundo.

 

Rui volta a confirmar: “Vários hotéis nas zonas de confronto abriram as portas para dar abrigo a manifestantes, alguns hospitais privados estão a tratar feridos de graça e toda a gente nas zonas quentes está a abrir as suas redes wireless ou a partilhar as passwords online porque as redes de telemóvel não estão a funcionar bem”. Mas há o outro lado. “Vários camionistas trouxeram camiões TIR para Besiktas para ajudar a barricar as estradas hoje. E no lado asiático um grupo com vários milhares de pessoas que tentava atravessar a ponte a pé para se juntar aos protestos foi impedido pela polícia que bloqueou a entrada da ponte”.

 

Acender e apagar luzes, bater nas panelas

 

Nada disto parece fazer parar os “indignados turcos”, um pouco a relembrar a Primavera árabe, cujo rastilho foi ateado na Tunísia em 2010, quando a 17 de Dezembro um engenheiro tunisino no desemprego se imolou em protesto por lhe ter sido confiscada a permissão para vender frutas e legumes num mercado local.

 

“Às 21h, nos últimos dois dias por toda a cidade as pessoas estão a bater panelas às janelas das suas casas e a apagar e acender as luzes como forma de protesto. Hoje foram muitas mais que ontem”, diz Rui. Num vídeo que percorre a Internet é possível ver o que este português relata. Parece um filme. Na escuridão da noite, luzes piscam intermitentemente por toda a cidade de Istambul. Ninguém dorme. Há muitas pessoas agarradas ao interruptor. Porque em casa também se protesta. “É importante para nós que esta informação saia do país, porque se não houver pressão internacional isto não vai acabar ou acaba muito mal”, confidencia.

 

“Por favor, partilhe isto com o povo português”

 

Ayse Yilmaz vive em Istambul, no lado europeu do estreito do Bósforo. E também quis falar ao Negócios, deixando um testemunho que espera ver divulgado. O nome, uma vez mais, é fictício. A segurança assim o exige. “ Costumávamos ter receio do RTE [forma abreviada por que é conhecido o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, na foto ao lado] e das forças policiais, mas o povo laico da Turquia perdeu o medo e tornou-se corajoso”, conta.

 

“Isto já não tem nada a ver com árvores! Tem a ver com a liberdade do povo laico da Turquia”, frisa. “Por favor, partilhe isto com o povo português. Mas mantenha o meu nome em segredo”, pede. “Se quiser, pode usar o nome Ayse Yilmaz, pois Ayse é muito comum aqui e Yilmaz também é um apelido que se vê bastante na Turquia”, sugere.

 

“O povo turco combate neste momento o regime autoritário pró-islâmico de RTE”, já que, acusa Ayse, “o primeiro-ministro não tolera o modo de vida dos laicos, como poder beber álcool e ter sexo sem estar casado; ele pensa que todos os laicos da Turquia são alcoólicos e tendentes à luxúria; ele acha que ser gay ou lésbica é uma doença que tem de ser curada; (…) é um grande ditador que silencia todo o tipo de vozes, excepto a sua”. “É isso que combatemos!”

 

E apesar da repressão policial contra estes protestos, nada parece demover os manifestantes, portugueses incluídos. Do mural de Facebook da jornalista Neuza Padrão, que tem acompanhado os desenvolvimentos na Turquia através de testemunhos que amigos lhe fazem chegar do local, chegam mais informações durante a madrugada: ““Um amigo português que acabou de chegar a casa vindo do centro faz o seguinte relato: ‘Estou mesmo emocionado, o ambiente nas ruas é brutal, as pessoas acreditam cada vez mais que vão ganhar, havia uma enorme festa no Gezi Park. E quando comecei a caminhar para Sisli, havia imensa gente em direcção a Besiktas para ajudar quem está em Akaretler’”.

 

O protesto que se alarga

 

Também nas cidades de Ancara (capital da Turquia) e de Izmir começa muita gente a juntar-se nas ruas para apoiar a resistência em Istambul, escreve a socióloga Defne Suman. Rui acrescenta: “A situação está muito complicada em Izmir. Há polícia a perseguir pessoas isoladas e a espancá-las. Em Ancara também há imensos confrontos. Durante o dia houve manifestações de apoio em todas as cidades da Turquia e até no Chipre. A grande maioria foi atacada pela polícia de choque com doses massivas de gás”.

 

Mas não é só a polícia e os manifestantes que estão envolvidos na violência que se vive neste momento em Istambul e noutras cidades. Os cidadãos pró-governo estão a ajudar. “Na página [de Facebook] do AKP (partido do governo, liderado por Recep Tayyip Erdogan) já vi vários ‘posts’ de gente a dizer: armem-se com paus, facas e armas e vamos ajudar a nossa polícia a apanhar esta gente”, conta Rui ao Negócios. “E o primeiro-ministro vai amanhã numa visita de Estado a Marrocos, Argélia e Tunísia e só regressa na quinta-feira!”

 

Enquanto isso, lembra-se Rui, “o grupo Anonymous declarou guerra ao governo turco, hoje ao fim do dia. Pouco depois, os sites do governo, comando central da polícia de Istanbul, do partido do governo e alguns meios de comunicação, foram atacados”.

 

As páginas de Facebook dos Anonymous, Occupy Turkey e Rise Up Portugal confirmam. E é nesses mesmos murais e cronologias que vão chegando, a um ritmo alucinante, fotos de apoiantes em todo o mundo, incluindo Portugal. “Estamos convosco”, "Turquia, não estás sozinha", resume a maioria.

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