Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Virgolino Faneca, o 25 de Abril e o refustedo

Virgolino Faneca, por força de ter um patrão reaccionário, teve de comemorar a 25 de Abril à noite. O resultado foi um enorme refustedo e um desvio menchevique do próprio.

28 de Abril de 2017 às 17:00
  • ...
Serve a presente para te relatar a aventura que foi a minha comemoração do 25 de Abril, da qual ainda não me recompus. Acontece que, no dia que celebra a entrada do país no caminho da democracia, o fascista do patrão obrigou-me a trabalhar, inibindo-me assim de participar na passeata diurna pela Avenida da Liberdade. Fiquei triste, muito triste, até porque tinha para estrear uma t-shirt vermelha com a cara do Che Guevara estampada a negro, uns ténis da Sanjo, uma espécie de memorabilia para fazer a ponte entre o passado e o presente, assim como um "cap" semelhante aos usados pelo timoneiro Mao, certo de que esta indumentária se poderia manifestar atractiva para captar o interesse das câmaras de televisão e assim tornar-me, nem que fosse por breves instantes, uma figura pública.

Isso não aconteceu, pela simples razão de que tive de vergar a mola a trabalhar, enquanto o patrão foi encher o bandulho de marisco, pretextando um almoço de trabalho com um cliente no Portinho da Arrábida. Ainda assim não esmoreci no meu ímpeto celebrativo e pensei de mim para mim: se não o posso fazer de dia, irei concretizá-lo à noite. Pelo caminho, desafiei o Faustino a acompanhar-me, mas o tipo disse que já tinha compromissos, eu mostrei-me compreensivo, mas quando soube que o compromisso, afinal, era ver a telenovela Ouro Verde, concluí que se tinha transformado num reaccionário empedernido, pelo que cortei relações com ele.

Portanto, à noite, lá saí, sozinho, com a vestimenta que te referi, em demanda de um local onde pudesse dar azo à minha alegria democrática. Foi então que, para enorme gáudio, descobri um estabelecimento denominado Cravo Vermelho. Que belo sítio para celebrar a data! Regozijei: esta gente deve estar também imbuída de um generoso espírito revolucionário. Nem estranhei o facto de a casa comercial ter a porta fechada porque, cogitei, seria uma forma de impedir a entrada de contra-revolucionários. Toquei à campainha, disse a senha que julgava impreterível, 25 de Abril sempre, e flanquearam-me a entrada. Assim que coloquei os pés na sala pus-me logo a cantar "Uma gaivota voava, voava/asas de vento/coração de mar", mas quando olhei em redor vi umas meninas de "shorts" e uns cavalheiros com ar azeiteiro a mirarem-me como se eu fosse um ET. Avaliei a situação e cismei que o problema era da música escolhida, pelo que mudei de faixa e comecei a trautear "Grândola vila morena/terra da fraternidade/o povo é quem mais ordena".

A estranheza tornou-se mais densa e um senhor de ombros largos e músculos pronunciados aproximou-se e ciciou a pergunta: o cavalheiro não se quer sentar, pedir uma bebida e conversar com uma das nossas meninas, por exemplo, aqui com a Lolita, que é uma jóia. Eu: olhe, eu vinha aqui comemorar o 25 de Abril e fazer a festa da revolução. Ele, ciciando agora em tom agreste: você está a gozar comigo. Eu: não, meu caro senhor, claro que não. Só quero celebrar o dia da Liberdade. Ele: celebre aqui com a Lolita, vai ver que não se arrepende. E a Lolita a rir-se, enquanto ia deslizando as suas mãos para o sítio onde termina a minha barriga.

Foi aí que percebi que tinha sido ludibriado. Na minha ingenuidade, tinha acabado por penetrar, salvo seja, num antro do pecado carnal. Não me contive. Fiz um refustedo de grande magnitude, apelidando todos os presentes de fascistas, PIDES, reaccionários, bufos, chulos e afins, até ao momento em que perdi os sentidos, atingido por um gancho do senhor que antes só ciciava. Acordei na rua, desiludido e sem carteira, pensando que há muitos que usam o cravo vermelho pelas razões erradas.

Contudo, esta circunstância descambou numa epifania, a qual por sua vez conduziu a uma decisão estruturante: resolvi amarrar a revolução a um poste e cuidar de salvar a Lolita, cujas mãos provocaram em mim um frémito indomável e prolongado.

Achas que corro o risco de me transformar num menchevique?


Um abraço deste que te estima,

Virgolino Faneca


Quem é Virgolino Faneca

Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.



Ver comentários
Saber mais 25 de Abril Virgolino Faneca
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio