Notícia
Virgolino Faneca, o 25 de Abril e o refustedo
Virgolino Faneca, por força de ter um patrão reaccionário, teve de comemorar a 25 de Abril à noite. O resultado foi um enorme refustedo e um desvio menchevique do próprio.
Isso não aconteceu, pela simples razão de que tive de vergar a mola a trabalhar, enquanto o patrão foi encher o bandulho de marisco, pretextando um almoço de trabalho com um cliente no Portinho da Arrábida. Ainda assim não esmoreci no meu ímpeto celebrativo e pensei de mim para mim: se não o posso fazer de dia, irei concretizá-lo à noite. Pelo caminho, desafiei o Faustino a acompanhar-me, mas o tipo disse que já tinha compromissos, eu mostrei-me compreensivo, mas quando soube que o compromisso, afinal, era ver a telenovela Ouro Verde, concluí que se tinha transformado num reaccionário empedernido, pelo que cortei relações com ele.
A estranheza tornou-se mais densa e um senhor de ombros largos e músculos pronunciados aproximou-se e ciciou a pergunta: o cavalheiro não se quer sentar, pedir uma bebida e conversar com uma das nossas meninas, por exemplo, aqui com a Lolita, que é uma jóia. Eu: olhe, eu vinha aqui comemorar o 25 de Abril e fazer a festa da revolução. Ele, ciciando agora em tom agreste: você está a gozar comigo. Eu: não, meu caro senhor, claro que não. Só quero celebrar o dia da Liberdade. Ele: celebre aqui com a Lolita, vai ver que não se arrepende. E a Lolita a rir-se, enquanto ia deslizando as suas mãos para o sítio onde termina a minha barriga.
Foi aí que percebi que tinha sido ludibriado. Na minha ingenuidade, tinha acabado por penetrar, salvo seja, num antro do pecado carnal. Não me contive. Fiz um refustedo de grande magnitude, apelidando todos os presentes de fascistas, PIDES, reaccionários, bufos, chulos e afins, até ao momento em que perdi os sentidos, atingido por um gancho do senhor que antes só ciciava. Acordei na rua, desiludido e sem carteira, pensando que há muitos que usam o cravo vermelho pelas razões erradas.
Contudo, esta circunstância descambou numa epifania, a qual por sua vez conduziu a uma decisão estruturante: resolvi amarrar a revolução a um poste e cuidar de salvar a Lolita, cujas mãos provocaram em mim um frémito indomável e prolongado.
Achas que corro o risco de me transformar num menchevique?
Um abraço deste que te estima,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino Faneca
Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.