Notícia
Virgolino Faneca espanta-se com Torremolinos e parte um dente a comer torrão de Alicante
Virgolino Faneca reflecte sobre os acontecimentos bestiais (adjectivo de dois géneros) das viagens de finalistas a Espanha e os comentários bestiais (adjectivo de dois géneros) que as mesmas suscitaram.
Folgo em saber que te encontras bem e que ainda reconheces os meus predicados em matéria de ciências sociais, valiosos para fazer a análise que me solicitas, a de dar um sentido aos distúrbios praticados pelos jovens portugueses que foram passar as férias da Páscoa a Torremolinos.
O segundo facto a reter é o de que esta é uma situação triplamente vantajosa para os hotéis que recebem os portugueses. Asseguram a ocupação total numa época de moscas, conseguem servir bebida e comida da treta sem que ninguém reclame e ainda têm a garantia de que vão receber uma indemnização preciosa porque há sempre danos. Os jovens, zelosos, asseguram o preenchimento destas três condições, contribuindo também para a sustentabilidade económica das agências de viagem nacionais, as quais preparam a folia com grande mestria, fazendo-se valer de décadas de experiência.
O terceiro facto é o de que os jovens só vão para Torremolinos, Benidorm e etc., porque imaginariamente se sentem distantes dos pais e podem praticar uma língua estrangeira. Como entenderás, há uma diferença abissal entre pedir uma cerveza ou uma cerveja, ou dizeres hola ou olá. Acresce que provar torrão de Alicante, outro dos aliciantes da aventura, é uma experiência de vida imorredoira. Em contrapartida, se fossem para Albufeira, era certo e sabido que os paizinhos arranjariam um pretexto qualquer para ir molhar os pés e os entrefolhos a Quarteira só para os vigiar. Pelo que a geografia ajuda à fuga, contribuindo para construir uma meta-realidade.
O quarto facto é o de que estas viagens são, digamos, uma espécie de catarse. Os adultos de hoje, que também pintaram a manta nessas viagens, podem expiar a culpa, considerando que os jovens de hoje fizeram pior. Onde é que já se viu! No meu tempo só fizemos cocó na pista da discoteca, agora atiram colchões para a piscina, pondo em risco a vida de terceiros. Ou ainda, no meu tempo só encravámos o elevador com palitos, agora arrancam televisores do quarto e colocam-nos na banheira, como se isso fosse uma manifestação de protesto contra a qualidade da programação. Estes jovens de hoje, efectivamente, não têm tino.
O quinto facto, talvez o mais importante de todos, é que estes acontecimentos bestiais (adjectivo de dois géneros, é só escolher) permitem que sejam tornadas públicas opiniões também elas bestiais (adjectivo de dois géneros, é só escolher), tais como: o ocorrido reflecte uma fragilidade na educação dos jovens; há famílias e escolas negligentes; é fácil cair em discursos moralistas e sentenças sumárias; não foi assim tão grave; ou, a sociedade portuguesa está a perder valores e isso pode hipotecar o futuro do país.
Para o ano há mais. E se a actualidade informativa for tão fraquinha como a de este ano, por certo que os nossos indómitos finalistas voltarão a ser notícia. Pelas piores razões, naturalmente. Nessa altura, como agora, valerão as palavras reconfortantes do secretário de Estado das Comunidades, José Luís Caneiro: "Os estudantes encontram-se bem."
Um amplexo deste teu,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino Faneca
Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.