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O peregrino Virgolino Faneca queixa-se de ter sido violentado na sua fé

Depois de uma gincana entre jornalistas e jornalistas disfarçados de peregrinos, depois de ter recebido um colete reflector do "Bull Bar Strip Club" e depois de muitas outras circunstâncias, o peregrino Faneca queixa-se ao bispo.

12 de Maio de 2017 às 17:00
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Caro. D António Marto

Exm.º senhor bispo de Leiria-Fátima, não nos conhecemos pessoalmente nem impessoalmente, mas esta circunstância não pode ser um obstáculo a que lhe manifeste, de forma peremptória, o meu mais veemente repúdio pelo que está a acontecer aos peregrinos que demandam ao santuário para celebrar o centenário das aparições.

Eu, que sou um peregrino calejado, sinto-me completamente violentado na minha fé pelas ocorrências que lhe passo a enumerar. Como habitualmente, juntei-me ao meu grupo de peregrinos, composto pelo talhante Cesário, a recepcionista Julieta, a modista Fernanda, a funcionária pública Amália e o canalizador Júlio, no Parque das Nações para fazer o denominado Caminho do Tejo. Logo aí, zás. Em vez de peregrinos fervorosos, sabe o que encontrei? Meninas em trajes ousados a oferecer cartõezinhos para os telemóveis e a tecerem loas às virtuosidades das operadoras que representavam. Durante a caminhada é bom para ligarem às vossas famílias a dar-lhes conta de que estão de boa saúde, argumentavam as ditas. Logo ao lado, meia dúzia de carros de exteriores das televisões e uma caterva de repórteres fotográficos a registarem o momento como se fôssemos atletas na linha de partida para uma maratona.

E eu a pensar com os meus botões, melgas, deixem-nos em paz, eu quero estar em contacto com o senhor e não com estes senhores e senhoras.

Ainda assim, recobrámos o ânimo e pés à estrada, desconhecedores de que o pior ainda estava para vir. Pelo caminho, encontrámos 10 peregrinos, três ciclistas, 52 jornalistas identificados e 43 jornalistas disfarçados de peregrinos, que nos fizeram uma espera à chegada a Porto de Muge. Mal nos sentámos para merendar já tínhamos 30 microfones apontados à dentuça com perguntas altamente pertinentes: então, vai ver o Papa? (não, vou visitar a minha tia a Rio de Onor); o que significa Fátima para si? (é a toponímia de uma localidade); vai pagar alguma promessa? (porquê, quer emprestar-me dinheiro); o que lhe custa mais na caminhada? (responder às vossas perguntas).

Batemos em retirada e os 52 jornalistas identificados ficaram a fazer perguntas aos 43 jornalistas disfarçados de peregrinos, o que em alguns casos terá contribuído para directos televisivos de alto coturno.

Para não ser exaustivo basta dizer-lhe, senhor bispo, que esta situação se repetiu em todos os pontos em que parámos, com ofertas de coletes reflectores pelo meio com dizeres como "A Tasca do Melro", "Bull Bar - Strip Club" (aspergi-me 20 vezes antes de o aceitar), "Recauchutagem Simões", etc.

Em Merceana, Alenquer, a coisa piorou. Aos 52 jornalistas identificados e aos 43 jornalistas disfarçados de peregrinos (que para o ano vão concorrer aos prémios de jornalismo, com reportagens deveras originais sobre o tema escritas na primeira pessoa) juntaram-se mais 25 jornalistas estrangeiros que fizeram aos peregrinos exactamente as mesmas perguntas que os seus congéneres portugueses, as camadas jovens de hóquei patins do Alenquer a baterem com os sticks na estrada e a gritarem vivas ao Salvador Sobral, o Francisco J. Marques com duas cartolinas, uma em cada mão, onde se lia, respectivamente, "Abaixo a Liga Salazar" e "Papa, só há um, o nosso Pinto e mais nenhum", 39 membros da Casa do Benfica da Azambuja a cantar "e quem não salta não é peregrino", o grupo de escuteiros de Arranhó a vender rifas para o Natal, 17 pedintes profissionais a comerciarem pensos que surripiaram às senhoras da Cruz Vermelha e ainda as "cheerleaders" do Grupo Desportivo de Fátima.

Posto isto, senhor bispo, venho humildemente pedir-lhe que coloque religiosidade e meditação nas hostes peregrinas ou que, em alternativa, convide o Tony Carreira para fechar com chave de ouro este espectáculo mediático. A escolha é sua.

Um cumprimento reverencial deste seu,

Virgolino Faneca


Quem é Virgolino Faneca

Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.



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