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Virgolino Faneca denuncia o embuste da Eurovisão

Virgolino Faneca rema contra a maré da unanimidade que se criou em torno do festival da Eurovisão, diz que a RTP revelou uma indesculpável ingratidão e que a vitória de Salvador Sobral sabe a fel.

19 de Maio de 2017 às 17:00
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Exm.º Senhor Gonçalo

Dirijo-me a si, enquanto presidente da RTP, para lhe manifestar o meu total repúdio pela forma como a estação que dirige tratou o Festival da Eurovisão. Surpreendido? Acha que deveria ficar contente pelo facto de Portugal ter ganho pela primeira vez o festival com uma música fifi que gerou uma estranha unanimidade, mesmo entre aqueles que antes consideravam o dito um subproduto musical? Resposta: não fiquei. Nem contente, nem feliz, nem orgulhoso, nem nada. Pelo contrário, nasceu em mim um azedume regado pela vossa indesculpável ingratidão.

Acha que não faz sentido? Olhe que está enganado. Este festival, na verdade, não foi um festival a sério. Há um elefante na sala que o transformou numa farsa e os portugueses que nele estiveram envolvidos em Mefistófeles de trazer por casa. Desagradecidos, despudorados, desmemoriados.

Sei que neste momento poderá estar a pensar, este Virgolino é lelé da cuca, não joga com o baralho completo ou tem um parafuso a menos, mas se assim for está redondamente enganado, como já de seguida constatará.

Após este rufar de tambores semântico passo a identificar-lhe a razão do meu colossal desconforto. Em Kiev, faltou o único e incomparável Eládio Clímaco e sem Eládio Clímaco não há Festival da Canção que se preze.

O que vocês fizeram ao Eládio é incompreensível. Cruel, até. O homem suportou todos os vexames festivaleiros em que Portugal obtinha menos pontos do que o Nacional da Madeira, sempre com uma voz sedosa em que se percebia a mensagem subliminar, para o ano é que é, nunca era, e ele permanecia estultamente optimista. Agora, logo que se vislumbrou uma hipótese de o milagre deixar de o ser, zás, trocaram o Eládio pelo Malato, sem respeito pelo passado vexatório que o Eládio suportou estoicamente, embora por vezes tivesse o amparo da sua icónica parceira destas lides, Ana Zanatti.

O Salvador Sobral ganhou e coiso e tal, tem uma história bonita, mas uma vitória não anunciada pelo Eládio é um anticlímax. O que é que o Malato percebe de Eurovisão? Zero. O que é o Clímaco percebe de Eurovisão? Tudo. Nada me move contra o Malato, mas cada macaco no seu galho e o galho festivaleiro não lhe pertence. Esta verdade dos factos é legitimada pela própria Wikipédia, na qual se pode ler: "No ano de 1976 [Eládio Clímaco], em Março, apresentou pela primeira vez o Festival RTP da Canção. Partilhou essa experiência com a colega Ana Zanatti. Em 1979 começou a apresentar os Jogos sem Fronteiras, foi o primeiro apresentador juntamente com Fialho Gouveia. Viria a apresentar durante vários anos ambos os programas e a realizar também a locução portuguesa do Festival Eurovisão da Canção."

Já sei, vai argumentar, o Eládio está reformado. E depois? Isso é uma desculpa de mau pagador. Quando se quer mesmo, tudo é possível, e o Eládio está para a Eurovisão como o Cristiano Ronaldo para a selecção nacional, é ele e mais 10.

Nesta medida, a vitória de Portugal na Eurovisão fui um embuste e eu recuso-me a pactuar com ele. Por isso, senhor Gonçalo, o melhor que tem a fazer é anunciar, desde já, que Eládio Clímaco será o apresentador do próximo certame que decorrerá cá no burgo.

Quero lá saber do Salvador Sobral, da sua música ou da forma brilhante como ganhou o festival. Afinal era ele a cantar contra uns tipos e umas tipas que tanto podiam estar num palco em Kiev como no circo de Natal do Mónaco, a andar no arame, a cuspir fogo ou a fazer de assistentes do mágico de serviço.

A RTP, se quer ser verdadeiramente uma estação de serviço público, tem de pôr Eládio Clímaco a apresentar o Festival da Eurovisão, porque tudo o resto é irrelevante. Assim sendo, senhor Gonçalo, agradeço que aja em conformidade.


Sem outro assunto de momento, subscrevo-me,

Virgolino Faneca


Quem é Virgolino Faneca

Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.



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