Notícia
Virgolino Faneca denuncia o embuste da Eurovisão
Virgolino Faneca rema contra a maré da unanimidade que se criou em torno do festival da Eurovisão, diz que a RTP revelou uma indesculpável ingratidão e que a vitória de Salvador Sobral sabe a fel.
Dirijo-me a si, enquanto presidente da RTP, para lhe manifestar o meu total repúdio pela forma como a estação que dirige tratou o Festival da Eurovisão. Surpreendido? Acha que deveria ficar contente pelo facto de Portugal ter ganho pela primeira vez o festival com uma música fifi que gerou uma estranha unanimidade, mesmo entre aqueles que antes consideravam o dito um subproduto musical? Resposta: não fiquei. Nem contente, nem feliz, nem orgulhoso, nem nada. Pelo contrário, nasceu em mim um azedume regado pela vossa indesculpável ingratidão.
Sei que neste momento poderá estar a pensar, este Virgolino é lelé da cuca, não joga com o baralho completo ou tem um parafuso a menos, mas se assim for está redondamente enganado, como já de seguida constatará.
Após este rufar de tambores semântico passo a identificar-lhe a razão do meu colossal desconforto. Em Kiev, faltou o único e incomparável Eládio Clímaco e sem Eládio Clímaco não há Festival da Canção que se preze.
O que vocês fizeram ao Eládio é incompreensível. Cruel, até. O homem suportou todos os vexames festivaleiros em que Portugal obtinha menos pontos do que o Nacional da Madeira, sempre com uma voz sedosa em que se percebia a mensagem subliminar, para o ano é que é, nunca era, e ele permanecia estultamente optimista. Agora, logo que se vislumbrou uma hipótese de o milagre deixar de o ser, zás, trocaram o Eládio pelo Malato, sem respeito pelo passado vexatório que o Eládio suportou estoicamente, embora por vezes tivesse o amparo da sua icónica parceira destas lides, Ana Zanatti.
O Salvador Sobral ganhou e coiso e tal, tem uma história bonita, mas uma vitória não anunciada pelo Eládio é um anticlímax. O que é que o Malato percebe de Eurovisão? Zero. O que é o Clímaco percebe de Eurovisão? Tudo. Nada me move contra o Malato, mas cada macaco no seu galho e o galho festivaleiro não lhe pertence. Esta verdade dos factos é legitimada pela própria Wikipédia, na qual se pode ler: "No ano de 1976 [Eládio Clímaco], em Março, apresentou pela primeira vez o Festival RTP da Canção. Partilhou essa experiência com a colega Ana Zanatti. Em 1979 começou a apresentar os Jogos sem Fronteiras, foi o primeiro apresentador juntamente com Fialho Gouveia. Viria a apresentar durante vários anos ambos os programas e a realizar também a locução portuguesa do Festival Eurovisão da Canção."
Já sei, vai argumentar, o Eládio está reformado. E depois? Isso é uma desculpa de mau pagador. Quando se quer mesmo, tudo é possível, e o Eládio está para a Eurovisão como o Cristiano Ronaldo para a selecção nacional, é ele e mais 10.
Nesta medida, a vitória de Portugal na Eurovisão fui um embuste e eu recuso-me a pactuar com ele. Por isso, senhor Gonçalo, o melhor que tem a fazer é anunciar, desde já, que Eládio Clímaco será o apresentador do próximo certame que decorrerá cá no burgo.
Quero lá saber do Salvador Sobral, da sua música ou da forma brilhante como ganhou o festival. Afinal era ele a cantar contra uns tipos e umas tipas que tanto podiam estar num palco em Kiev como no circo de Natal do Mónaco, a andar no arame, a cuspir fogo ou a fazer de assistentes do mágico de serviço.
A RTP, se quer ser verdadeiramente uma estação de serviço público, tem de pôr Eládio Clímaco a apresentar o Festival da Eurovisão, porque tudo o resto é irrelevante. Assim sendo, senhor Gonçalo, agradeço que aja em conformidade.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me,
Virgolino Faneca
Quem é Virgolino Faneca
Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.