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As entrevistas que marcaram o ano: Vera Mantero

A coreógrafa e bailarina Vera Mantero recorda o seu “25 de Abril à janela” – tinha então sete anos e morava em frente à Casa da Moeda, um dos lugares da Revolução. Vera olhava e via muitos soldados. Não sabe dizer se os corpos também se libertaram logo, ela era ainda uma criança, mas sabe que se foram libertando e sente que agora estão a encolher de novo.
Lúcia Crespo e Tiago Sousa Dias - Fotografia 25 de Dezembro de 2024 às 14:00

A coreógrafa e bailarina Vera Mantero, um dos grandes nomes da dança contemporânea portuguesa, relembra o seu "25 de Abril à janela" - tinha então sete anos e morava em frente à Casa da Moeda, um dos lugares da Revolução. Vera olhava e via muitos soldados. Não sabe dizer se os corpos também se libertaram logo, ela era ainda uma criança, mas sabe que se foram libertando e sente que agora estão a encolher de novo. Estudou dança com Anna Mascolo, fez parte do Ballet Gulbenkian, tornou-se um dos nomes centrais da "Nova Dança Portuguesa" - "percebemos que podíamos rasgar com muita coisa, e foi isso que fizemos" - e fundou há mais de 20 anos o projeto O Rumo do Fumo. Está agora a preparar uma nova "Micro-peça", com Henrique Furtado e João Bento, e um dueto "improvisado" com a trompetista Susana Santos Silva. Vera Mantero gosta de cruzar pessoas e linguagens.


* Entrevista publicada originalmente a 28 de março de 2024

Sempre quis ser bailarina?

Acho que sim. Comecei a ter aulas de ballet aos seis anos e estudei dança com a Anna Mascolo, mas já dançaricava muito em casa, ao som dos discos da minha mãe – sobretudo rock dos anos 60, James Brown, Beatles, Elvis... Ela também ouvia uma canção que eu adorava, "Sugar, Sugar", do The Archies. Sempre gostei muito de dançar. Aliás, na escola primária fiz uma redação onde já contava que queria ser bailarina. Adoro aquela redação. É um texto com cinco linhas e que diz: "eu gostava muito de ser bailarina ou arqueóloga. Gostava de ser bailarina porque acho que faz bem ao corpo e porque é muito bonito. E gostava de ser arqueóloga para saber a evolução do homem...". A minha avó tinha em casa um livrão enorme chamado "História do homem nos últimos dois milhões de anos", que trazia aquela imagem muito conhecida sobre a evolução do ser humano, eu adorava o livro e devia achar que aquilo era arqueologia. (risos)

 

Andava na escola primária no 25 de Abril. Tem recordações desse dia?

Lembro-me muito bem. Nós morávamos mesmo em frente à Casa da Moeda, que era um lugar estratégico, afinal, era a casa do dinheiro. Nessa manhã, a minha irmã desceu os andares para apanhar a camioneta que a levava à escola, a camioneta não chegou e ela voltou para cima. Ficámos todos em casa. Recordo-me de olhar pela janela e de ver soldados junto à Casa da Moeda. Montes de soldados! O meu 25 de Abril foi assim – à janela. No 1.º de Maio, a minha mãe já nos levou para a rua, para a Alameda. Lembro-me de perguntar: ó mãe, porque é que está toda a gente com os dedos em V?

Assistimos também a uma revolução do próprio corpo em Portugal? O encenador Jorge Silva Melo falava no "corpo salazarista, um corpo muito rígido. Estavam todos de fato, esticadinhos, em posição de tropa ou de guarda de rainha"...

Há também um artigo famoso do crítico de arte Alexandre Melo, "Os portugueses não têm corpo", publicado no Expresso mais tarde, em 1993. Esse texto fala de um solo meu ("Perhaps she could dance first and think afterwards") e de um trabalho do Francisco Camacho ("Um Rei no Exílio") como exemplos de obras em que o corpo se estava a transformar – "como se estes autores estivessem a adquirir corpo" –, esse corpo que os portugueses não tinham... Claro que o 25 de Abril trouxe uma abertura, uma liberdade e uma não censura que se manifestou depois nos comportamentos e também a nível artístico – mas essa transformação não foi imediata, pelo menos na dança.

 

"O teatro dá um salto, o verbo é rápido, a música emancipou-se rapidamente, o rock apareceu, mas o corpo, que é um sistema neuromotor complexo onde tudo está tatuado, é mais difícil de desmontar", disse o coreógrafo Rui Horta numa entrevista ao Negócios. A dança demorou mais tempo a libertar-se?

Talvez esse rompimento tenha acontecido na dança social, nas discotecas e assim, mas eu era demasiado pequena para testemunhar as diferenças. Sei que na dança artística essa libertação levou mais tempo. Lembro-me de ver uma fotografia de um bailado em Portugal de 1976 e de pensar que tinha um ar tão antigo e serôdio que mais parecia algo dos anos 1950. A dança implica muita disciplina, como o atletismo e outros desportos. Por isso os rompimentos não são fáceis. O corpo "balético" durou até muito tarde, fora do país também. Até os "corpos" do Merce Cunningham – considerado um coreógrafo moderno ou contemporâneo – continuavam a ser muito "baléticos". Ele operou uma série de cortes e de subversões, mas depois cristalizou um pouco. Foi com a dança norte-americana (ou estado-unidense…) dos anos 1960 que as coisas mudaram mais.

Sente que contribuiu para essa mudança em Portugal?

Acho que dei o meu contributo para a chamada Nova Dança Portuguesa. Faço parte de uma geração que apareceu nos anos 1980, início de 1990 – eu, o Francisco Camacho, o João Fiadeiro, a Clara Andermatt e outras pessoas – que começou um trabalho diferente do que fazia então a Gulbenkian ou a Companhia Nacional de Bailado. Antes de nós, também a Paula Massano, a Madalena Victorino e a Olga Roriz mostravam uma outra atitude. Nós tivemos foi a sorte de não sermos só dois ou três, éramos muitos, e de recebermos o olhar atento de pessoas como o Gil Mendo e o António Pinto Ribeiro – aliás, a designação Nova Dança Portuguesa é do António Pinto Ribeiro, que mais tarde até quis deixar cair a denominação. Mas mesmo quando o "pai" do nome tentou a matar a criança, a nomenclatura não morreu – continuou a ser usada, sobretudo por investigadores que estão a fazer trabalho historiográfico sobre a dança.

 

Faz parte que uma geração que também saiu muito do país…

Fomos saindo e fomos voltando. Já antes, o Vasco Wellenkamp, por exemplo, tinha ido para Nova Iorque estudar com a Martha Graham e depois voltou. Sentíamos de alguma forma que, se não voltássemos, tudo iria ficar igual na sua forma de funcionar. Claro, a Companhia Nacional de Bailado era na altura uma companhia estritamente de dança clássica, mas mesmo o Ballet Gulbenkian tinha regimes de funcionamento muito dentro da caixa – fazer uma dança era sobretudo preparar uma sequência de passos para encaixar numa música; fazer uma dança era mover o corpo bem caladinho...

O corpo "balético" durou até muito tarde. Nós percebemos que podíamos rasgar com muita coisa, e foi isso que fizemos.

E o que é fazer uma dança?

Penso que começámos a abordar a dança de uma forma mais expandida, como aconteceu com outras artes que romperam com os seus regimes estritos. Na pintura, saltou-se para as três dimensões e para as instalações, por exemplo; a escultura "saiu" dos seus meios tradicionais, como a pedra e o bronze, e passou a usar materiais tais como lixo e tudo o que fosse preciso. Na dança havia também outras possibilidades que nos fascinavam, e para isso muito contribuiu o projeto Encontros ACARTE da Gulbenkian – que nos mostrou a nova dança europeia, mas também asiática e norte-americana. Nós éramos miúdos com 18, 20 anos, de olhos arregalados, a absorver todas as formas possíveis de dançar. Percebemos que podíamos rasgar com muita coisa, e foi isso que fizemos. Nesses anos 1980, éramos expostos a muitas influências, íamos a exposições e a concertos, víamos muitos filmes de autor. Havia já alguma oferta cultural em Lisboa e nós íamos ver tudo, éramos novinhos e vivíamos só para aquilo.

 

Estudou também em Nova Iorque. O que mais a marcou nesse período?

Estive lá apenas um ano letivo, em 1989-1990, mas aprendi imenso, sobretudo técnicas que envolvem contacto de improvisação. Depois também estudei teatro, quer teatro mais tradicional quer teatro físico, mais experimental, assim como voz e composição. Por vezes ia à Biblioteca de Artes Performáticas de Nova Iorque, no Lincoln Center – tudo o que não se podia ver ao vivo, estava ali, em filme ou em livros. Foram de facto vivências importantes. Morei em vários sítios, consoante as oportunidades de renda de casa, e conheci muitos lugares. Já não apanhei aquela Nova Iorque "hardcore" dos anos 1960 e 1970, mas havia algumas zonas "proibidas". O Harlem era ainda algo perigoso e o East Village era um bocadinho esquisito, ainda que habitável – aliás, já estava a gentrificar e a ficar cheio de artistas. Fui a muitos espetáculos e concertos.

Trouxe de lá linguagens diferentes. Foi fácil implementá-las por cá?

Bebi muitas coisas e quando voltei encontrei uma série de oportunidades, na verdade. Exemplo disso foi o festival Europália na Bélgica em 1991 (ano em que Portugal era o país-tema). Foi muito importante para as pessoas da minha geração mostrarem o seu trabalho, também no estrangeiro. Tivemos muita sorte e tudo se foi conjugando.

 

Há também uma intenção política nos seus projetos?

É difícil o pensamento não ser político, o pensamento será sempre um posicionamento perante as coisas. E a dança é um lugar onde corpo e pensamento se cruzam – a dança tanto se distingue do desporto como se distingue da pura filosofia, no sentido em que falta um pouco de corpo à filosofia e falta um pouco de filosofia ao desporto.

 

É esse lugar de pensamento que está em trabalhos mais recentes como "All you need is plankton" e "O Susto é um Mundo", por exemplo?

A peça "All you need is plankton" é no fundo uma espécie de palestra animada sobre o papel das baleias no ecossistema dos oceanos e no combate às alterações climáticas. "O Susto é um Mundo" é difícil de explicar, muitas vezes as obras são evocações de várias coisas, são cruzamentos de muitos géneros, uns mais figurativos, outros mais abstratos. Posso falar dos pontos de partida, mais do que dos pontos de chegada. Partimos da ideia de que a noção de contradição pode funcionar como antídoto contra alguns problemas contemporâneos que resultam de um mundo de pensamento único. Fomos explorando diversas formas de trabalho, umas mais dançadas, outras diferentes, com trabalho musical, texto e voz, para levar as pessoas a mergulharem num determinado universo e a serem impactadas por esse mergulho – isso é algo que me interessa bastante.

Tenho a sensação que as pessoas hoje dançam menos, o que é grave - quando se subtrai o lugar da dança, algo fica em falta. Quando se subtraem rituais, fica em nós um vazio.

Quer de alguma forma sacudir as pessoas?

A todos os níveis. Hoje, está tudo quieto em frente ao ecrã, há menos corpo. Em vez de jogarem à bola, os miúdos estão fechados em casa a falar uns com os outros de "phones" na cabeça. Estamos todos a sofrer com menos corpo – e ao mesmo tempo sofremos cada vez mais do pescoço, dos polegares e das costas! Estamos muito parados. E tenho a sensação que as pessoas hoje dançam menos. Dançar sempre fez parte da nossa sociabilidade, desde tempos antigos, era algo que as pessoas faziam em conjunto. Esse hábito desapareceu bastante, o que é grave – quando se subtrai o lugar da dança, algo fica em falta. Quando se subtraem rituais, fica em nós um vazio.

 

A pandemia acentuou o fechamento do corpo?

Já se sentia esse fechamento antes. Lembro-me de uma conversa com uma professora de artes visuais. Ela costuma recorrer a técnicas performáticas, não põe os alunos apenas a fazer desenhos e pintura. Dá aulas há muitos anos, acompanhou diversas gerações e sente que os miúdos estão agora mais resistentes a mexer o corpo e, quando desafiados, respondem: "não quero ir para o chão, não quero tirar os sapatos, a roupa é de marca, a sapatilha não sei o quê". Tudo é um problema. Esta sua observação é representativa do que está a acontecer no corpo da juventude, naquele corpo em que se esperaria mais rasgo. Acho que o corpo já foi mais aberto e que fechou mais outra vez. Assistimos ao retrocesso de muitas conquistas, assistimos também ao regresso do conservadorismo, e esse conservadorismo é também um voltar a fechar as portas ao corpo.

Todos os corpos sabem dançar?

Sabem, e é fascinante ver os corpos a movimentarem-se em qualquer idade. Há exemplos de grandes figuras que dançaram até muito tarde: Merce Cunningham, Steve Paxton, Kazuo Ohno. Eles foram encontrando formas de continuar a dançar. O Kazuo Ohno chegou a dançar em cadeira de rodas, o Cunningham também, e antes disso já dançavam de maneiras extraordinárias. Era absolutamente incrível observar aquilo que estavam a encontrar para o seu próprio corpo ou o que é que o seu próprio corpo lhes estava a mostrar. Mas também há muita gente da dança que tem de parar mais cedo, por causa de lesões ou por não conseguir continuar. Eu sempre achei que iria ser como o Cunningham ou como o Kazuo Ohno, mas às tantas começamos a ter dores aqui, problemas ali e pensamos: espera lá, já estou a perceber porque é que são tão poucos os que continuam a dançar. É preciso mais trabalho para manter a máquina a rolar (risos). Mas também vemos pessoas a chegar ao mundo dança já com alguma idade, como acontece na Companhia Maior, e é maravilhoso. Eu sempre adorei ver pessoas mais velhas a dançar.

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