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Uma doença chamada riqueza

Nos campos desta lezíria ribatejana, os patrões preparam a leitura de uma peça de teatro. Ao mesmo tempo, os seus homens cumprem o ritual da vindima. Entre eles, uma distância tão grande.

"150 milhões de escravos" a peça encenada por Maria João Luís está no teatro da trindade, em lisboa, até 28 de janeiro. parte depois para ponte de sor, de 1 a 11 de fevereiro. Pedro Domingos
27 de Janeiro de 2018 às 14:00
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Uma mulher jovem vestida de negro. Porquê? "Estou de luto pela minha vida." Na resposta, um convite implícito a que se partilhe a mágoa estendida em palco. É preciso tempo para se entrar nesta história, em plena lezíria ribatejana, a mesma da infância de Maria João Luís, a encenadora de "150 Milhões de Escravos".

Um arranque um tanto ou quanto hermético, sem palavra, no qual o movimento se insurge. Uma força braçal, característica dos que trabalham o campo em época de vindima, estende-se a todo o corpo. É uma energia que se mantém sempre pelas interpretações com um certo exagero, intencionalmente teatrais.

Numa peça em que se quer denunciar a escravatura infantil - segundo a Amnistia Internacional, são 150 milhões os menores forçados a trabalhar nos nossos dias -, estas vozes só nos chegam através do outro reverso da moeda: aqueles que exploram e olham para o trabalho alheio apenas como uma das variáveis do seu próprio enriquecimento.

"150 Milhões de Escravos" leva também o universo do teatro para o próprio campo. Nesta herdade, tornou-se tradição criar um espectáculo a cada época de vindimas. Como os cestos que carregam as uvas, também os membros desta família - cujas relações só começam a tornar-se claras a meio da peça - têm uma missão para cumprir. Uma tarefa mais do intelecto do que do físico, é certo.

Enquanto se discute a densidade das opções de escrita de um sobrinho que anseia ser poeta e dramaturgo, há palavras que saem como vergastadas nas costas. São, para manter simples a dualidade, sobre o modo como os ricos pensam os pobres, como olham para a sua condição de indigência como uma doença.

Maria João Luís opta pela combinação de três textos distintos - "Em homenagem aos nossos empregados" de Mickaël de Oliveira, "A Gaivota" de Anton Tchekhov e "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes -, o que se nota numa certa demora (intencional, parece-nos) para perceber o que se passa em cena. Basta transpor para a realidade que se pretende retratar: também nós levamos demasiado tempo a tomar consciência de que o trabalho infantil existe na vida real, à nossa volta.

Há uma música constante, que chega a sobrepor-se e a cortar o próprio texto dos actores. Afinal, por mais que o pessimismo possa tomar conta desta família de proprietários agrícolas, políticos ou intelectuais, o clima continua a ser de festa. E nem a morte alheia de um trabalhador que se descobre ser menor de idade, por mais que os abale momentaneamente, deve parar as suas celebrações.


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