Notícia
Os pés dela
Uma ferida, chamada traição, aberta em peito de mulher. Jasão foi o cruel destino de Medeia. E será, também, o alvo claro da sua requintada vingança. Um clássico para ver com olhar de presente.
Medeia - Depois de uma residência artística nos Açores, a nova criação da Companhia João Garcia Miguel esteve em cena no Teatro Ibérico, em Lisboa, até esta quinta-feira, 1 de Março.
Jasão. Fixe-se o nome. Pode um homem ser o cruel destino de alguém? Pode uma paixão repentina ser a tragédia de alguém?
Sabendo a verdade, os dedos dos pés de Medeia contorcem-se, virados uns para os outros, com a ira crescente. Ela deixou a sua terra, matou o irmão, viveu como forasteira por ele. Jasão, o motivo da sua desgraça. O mesmo que a troca, agora, pela filha do rei Creonte. Traição.
A ambição no lado masculino, o estatuto descartável no lado feminino. Medeia é uma das figuras da mitologia que mais tem inspirado artistas. De Delacroix a Pasolini, passando por Cézanne. E, agora, João Garcia Miguel. Como habitual, é um trabalho intenso, em que o corpo assume o protagonismo, numa zona de transição entre o teatro e a dança contemporânea. Fortes são também as interpretações de David Pereira Bastos - desdobrado em três figuras - e Sara Ribeiro.
Esta última, apenas Medeia, sempre a balançar no fio da loucura, do excesso da mágoa, rumo a uma certeza: o esforço constante, que não transparece, deixá-la-á exausta no final. Ela é a personificação do modo como o feminino pode definir o jogo da política e, logo, da própria vida. Capaz de dominar os movimentos ou deixar-se levar por eles nos momentos certos, embrulhando-os com os tons certos nas suas frases. Exagero necessário, por vezes.
O texto clássico de Eurípides, adaptado por Francisco Luís Parreira, tem uma brutalidade e uma violência inerente, regado com laivos de ironia. O mais interessante, ao longo do espectáculo, será assistir como ele contrasta com uma certa melancolia do piano de Mário Laginha, também ele em palco. Notas simples, a acompanhar o ritmo das palavras, que nos embalam nesta viagem. Percebe-se que, ali, a música faz todo o sentido. Para aligeirar e acentuar, em simultâneo, o sofrimento que se vive ao lado do piano.
A vingança de Medeia haverá de servir-se requintada, na versão mais cruel da sua história. Condenada ao exílio com os próprios filhos, ela arranja uma forma de mostrar ao marido infiel como ele lhe abriu uma ferida sem cura no peito. Todas as mulheres abandonadas transformam-se em bruxas, avisa. E o feitiço do ódio atingirá os que saíram do seu ventre, para que eles não cresçam como o pai com quem tanto se pareciam.
Agora, esperará Jasão a cada manhã o homem que ele não soube ser. Voltará, como esta Medeia de olhar turvo, à sombra de onde partiu. Porque tudo muda, excepto o âmago negro do ser humano. Mesmo com poderes de divindade.
Jasão. Fixe-se o nome. Pode um homem ser o cruel destino de alguém? Pode uma paixão repentina ser a tragédia de alguém?
A ambição no lado masculino, o estatuto descartável no lado feminino. Medeia é uma das figuras da mitologia que mais tem inspirado artistas. De Delacroix a Pasolini, passando por Cézanne. E, agora, João Garcia Miguel. Como habitual, é um trabalho intenso, em que o corpo assume o protagonismo, numa zona de transição entre o teatro e a dança contemporânea. Fortes são também as interpretações de David Pereira Bastos - desdobrado em três figuras - e Sara Ribeiro.
Esta última, apenas Medeia, sempre a balançar no fio da loucura, do excesso da mágoa, rumo a uma certeza: o esforço constante, que não transparece, deixá-la-á exausta no final. Ela é a personificação do modo como o feminino pode definir o jogo da política e, logo, da própria vida. Capaz de dominar os movimentos ou deixar-se levar por eles nos momentos certos, embrulhando-os com os tons certos nas suas frases. Exagero necessário, por vezes.
O texto clássico de Eurípides, adaptado por Francisco Luís Parreira, tem uma brutalidade e uma violência inerente, regado com laivos de ironia. O mais interessante, ao longo do espectáculo, será assistir como ele contrasta com uma certa melancolia do piano de Mário Laginha, também ele em palco. Notas simples, a acompanhar o ritmo das palavras, que nos embalam nesta viagem. Percebe-se que, ali, a música faz todo o sentido. Para aligeirar e acentuar, em simultâneo, o sofrimento que se vive ao lado do piano.
A vingança de Medeia haverá de servir-se requintada, na versão mais cruel da sua história. Condenada ao exílio com os próprios filhos, ela arranja uma forma de mostrar ao marido infiel como ele lhe abriu uma ferida sem cura no peito. Todas as mulheres abandonadas transformam-se em bruxas, avisa. E o feitiço do ódio atingirá os que saíram do seu ventre, para que eles não cresçam como o pai com quem tanto se pareciam.
Agora, esperará Jasão a cada manhã o homem que ele não soube ser. Voltará, como esta Medeia de olhar turvo, à sombra de onde partiu. Porque tudo muda, excepto o âmago negro do ser humano. Mesmo com poderes de divindade.