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O encantador acto de abrir a burra

Simetria ao som do rigor. Em "Banda Sonora", Ricardo Neves-Neves volta à infância e faz dela uma viagem ao que de mais disforme há no ser humano. O palco é outro universo, capaz de nos espantar, de nos fazer acreditar.

Alípio Padilha
17 de Março de 2018 às 14:00
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"Banda Sonora"
O Teatro do Eléctrico, de Ricardo Neves-Neves, comemora 10 anos. "Banda Sonora", em cena no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, até 18 de Março, é um dos momentos deste aniversário redondo.


Tão pequenina, tão perfeitinha. É assim a infância, até numa floresta fora deste mundo. Tempo de descobertas, de traumas, de revelações. Tempo de vestidos volumétricos, brancos e puros, prontos a sujarem-se com o negrume da vida.

O que acontece depois de se chocar um ovo durante oito anos? E quando se inicia a dissecação de um sapo, essa criatura mentirosa? Só se fuma de verdade quando se trava e os alvéolos gritam de dor? E casar, o que é? É beijar na boca?

Três meninas vão tentar responder-nos. Bem, na verdade, são seis. Não é a primeira vez que Ricardo Neves-Neves desdobra a mesma personagem em dois corpos distintos. Mas, em "Banda Sonora", elas estão ligadas além da coordenação exacta dos seus gestos. Duas vozes tornam-se uma. E é impossível, por mais que se queira ou tente, separá-las.

São meninas alegres, apesar dos traumas e tristezas das suas curtas vidas. De uma ingenuidade sinistra, a fazer lembrar filmes de terror. Elas contam-nos as suas histórias, divertem-nos. Até que um revés (mais esperado a cada uma delas, admita-se) mostra a essência humana de que são feitas. Mesmo quando o seu aspecto disforme, extraterrestre até, puxa no sentido inverso.


Também elas são vítimas do tempo, forçadas a crescer, a assumir papéis de adultas. Nesta floresta onde as árvores têm telefones e dançam ao sabor do vento, estão condenadas a sucumbir a uma maldade que lhes está nas entranhas. E que rasga peles alheias. Da outra menina, ali tão perto, ali tão burra…

Aquilo que Ricardo Neves-Neves coloca em cena é um trabalho de rigor como há poucos. Primeiro, pela forma como trabalha os pares de actrizes. Depois, pelo modo como as distribui e orienta no espaço como um conjunto. As frases repetem-se, numa e noutra ordem, até quase ao ponto da saturação, para mostrar, uma vez mais, que aqui tudo é construído. Nada foi deixado ao acaso. Nem um simples levantar de mão.

Juntam-se efeitos sonoros e visuais, a roçar o desenho animado. E tudo faz sentido. Esse exagero faz sentido. É belo pela capacidade de nos fazer acreditar, por uma hora, num mundo que é, ao mesmo tempo, real e surreal. Para chegar a outra conclusão: algures, nas mentes de cada um de nós, existirão lugares semelhantes à espera de um palco.

E de uma banda sonora, neste caso assinada por Filipe Raposo, o parceiro de criação. Não fossem essas notas, tão dignas de um palco como de um filme, e as histórias destas três meninas não fluiriam tão bem. A música interpretada em palco pela Orquestra Metropolitana de Lisboa embala-as, envolve-as, define o tom. Sem assumir o protagonismo, mas garantindo para si um lugar de destaque constante.

É um encontro feliz, mágico até. Com "Banda Sonora", Ricardo Neves-Neves subiu a fasquia, cultivando a estética própria do seu Teatro do Eléctrico. Deixa a curiosidade para o que virá a seguir. E, querendo ou não, faz de nós crianças reguilas, que acreditam no desconhecido, desejosas por saber que mistério há para resolver. Deixa o público tão pequenino, tão perfeitinho.


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