Notícia
Cristina Carvalhal: O trabalho criativo pressupõe uma capacidade de estar consigo mesmo
“Elizabeth Costello” é um romance de J. M. Coetzee e foi adaptado para teatro por Cristina Carvalhal. Depois da estreia na Culturgest, em Lisboa, para a semana estará no Teatro Nacional de São João, no Porto.
Elizabeth Costello é escritora. Podia ser actriz ou encenadora. O tempo passa por ela enquanto ela se debruça sobre ideias, enquanto pensa o que quer dizer. Tem certezas, mas tem mais dúvidas. No final, há um balanço de um corpo que hesitou entre a arte e a vida. "Elizabeth Costello" é um romance de J. M. Coetzee e foi adaptado para teatro por Cristina Carvalhal. Depois da estreia na Culturgest, em Lisboa, para a semana estará no Teatro Nacional de São João, no Porto. Cristina Carvalhal tem levado a palco vários textos não dramáticos. Começou com Raymond Carver, que fazia lembrar Tchékhov. Começou a encenar quando percebeu que queria ser mais do que uma peça na engrenagem, queria montar toda a engrenagem. Não deixa de continuar a ser actriz. No fundo, o trabalho é sempre o mesmo. O foco, o mesmo: as pessoas. Ou melhor, aprendermos a pormo-nos na pele das outras pessoas.
1. O "Elizabeth Costello" não é um romance óbvio de adaptar. É um romance cheio de fragmentos diversos. Há quem diga que nem é um romance. Tem material de conferências. Tem ficção também. Tem quase crítica literária também. E depois tem este capítulo, no final, que é a chegada desta escritora, a Elizabeth Costello, a um sítio estranho, onde tudo lhe parece um cliché e onde é suposto ela atravessar um grande portão. Para tal, ela tem de responder perante um tribunal meio kafkiano sobre as suas crenças. Perguntam-lhe em que é que ela acredita. Ela está no final da vida e, de alguma forma, tem de fazer um balanço. Este capítulo foi o que nos seduziu. Digo "nos" porque foi a Manuela Couto, uma actriz com quem costumo trabalhar e de quem gosto muito, que me mostrou este livro já com o intuito de trabalharmos a partir dele, até porque eu já tinha feito outras encenações a partir de textos não dramáticos. Esta cena pareceu-lhe muito teatral, e a mim também. E depois apaixonou-me o livro. Tem muitos aspectos que nos fazem eco enquanto artistas, porque a protagonista é escritora.
A Elizabeth Costello tem dificuldade em dizer quais são as suas crenças. O trabalho do escritor ou do artista é questionar, sim. Sim e não. Sim, no sentido de olhar para as coisas não como coisas acabadas, e poder continuar a duvidar delas. Mas depois há coisas que nos guiam, coisas em que acreditamos e que acho que não nos limitam: orientam-nos, são referências para não nos perdermos totalmente na escuridão.
2. O trabalho criativo é uma coisa de si para si. É uma coisa de nos ouvirmos, de estarmos em sintonia connosco. E isso pressupõe um isolamento, uma capacidade de estar consigo mesmo e de se perguntar a si próprio algumas coisas. É isso que a Elizabeth Costello faz. Diz-se [na peça] que ela é obsessiva, que dedica muito tempo à escrita. Dá-se a entender que, de alguma forma, ela negligenciou um pouco os filhos. O filho ficava de fora da porta a choramingar até o choramingar se transformar num cantarolar.
Acho que esse lado da criação existe em todas as áreas. É certo que um escritor escreve sozinho em frente à folha. Nós, no teatro, sentamo-nos todos juntos em redor de uma mesa ou, depois, num palco. Mas cada um luta com os seus fantasmas, as suas insónias, as suas dúvidas. Cada um tem de pôr em causa aquilo que vai estruturando. Vai estruturando e vai pondo em causa, num movimento incessante de aproximação. Isso é comum a todas as artes. No teatro, testamos isso colectivamente e um escritor não, mas originalmente o movimento é o mesmo. No teatro, temos esta fase de nos contaminarmos, de criar sinergias, e o que conseguimos juntos é maior do que a soma do que cada um traz. Mas é uma segunda fase. Cada um de nós, quando chega aqui, já passou pelo inferno.
3. Agrada-me muito o trabalho colectivo. Fazer algo que passa por vários filtros, que é discutido, que é negociado, que é vertido à medida do que as outras pessoas, que estão a trabalhar connosco, entendem que são as nossas ideias. Torna-se uma bola gigante de neve, uma avalancha.
No caso desta adaptação, praticamente tudo foi reescrito quando chegaram os actores. Podemos pensar - e temos de pensar - imenso em casa, mas depois as coisas começam a acontecer no confronto com os actores, que vão tornar aquilo seu. E, depois, com o público, que é o último elemento que se junta a esta equação.
Durante a montagem desta peça, tive muito a sensação - aquela sensação que deve ter o escultor ou o oleiro - de chegar a uma dada altura e ter de parar; pôr um pano por cima e dizer: amanhã volto. E voltar no dia seguinte e tornar a pegar onde deixei. Tornar a olhar. Agora, se calhar, tirava aqui, amolgava ali. Com esta peça tive muito essa sensação de que não é possível fazer tudo de uma vez.
No final dos ensaios, costumo escrever as perguntas com que fico. E elas depois acabam por responder-se por si. Não quer dizer que seja logo no dia seguinte. Não quer dizer que sejam respondidas integralmente ou de forma definitiva. Mas vem uma resposta qualquer.
4. Como actores, podemos ter um grande papel para interpretar, mas se o que está à volta não funciona, se o contexto não faz sentido, não tem interesse. Seria como olhar para um quadro e dizer: gosto deste cantinho à direita em baixo.
À medida que fui tendo mais experiência como actriz, tornei-me mais consciente do todo. E isso, se calhar, levou-me a querer participar da feitura do todo.
Mas lembro-me de pensar que não queria encenar e depois, um dia, começar a pensar que gostava muito de encenar uns textos do Raymond Carver, que depois virou um espectáculo que se chamava "De que Falamos Quando Falamos de Amor", que é o título de um conto e também de um livro dele. Tudo começou com essas histórias curtas, esses pequenos contos. São textos poéticos e inconclusivos. Fazem lembrar o Tchékhov. Aliás, o Raymond Carver tinha uma admiração enorme pelo Tchékhov. Os contos do Carver falam da natureza humana. O foco está sempre nas pessoas. Se calhar, em toda a literatura, é sempre esse o foco, mas não sei dizer isto de outra maneira. Acho que ele olha sempre de um ângulo muito curioso: não julgador. Acho que é isso: não julgador. Desperta-nos compaixão. Compaixão, no sentido de nos pormos no lugar do outro, de sentir com o outro.
Esta peça, "Elizabeth Costello", é também sobre isso: sobre a capacidade de nos pormos na pele do outro. "Empatia" talvez seja a palavra.
1. O "Elizabeth Costello" não é um romance óbvio de adaptar. É um romance cheio de fragmentos diversos. Há quem diga que nem é um romance. Tem material de conferências. Tem ficção também. Tem quase crítica literária também. E depois tem este capítulo, no final, que é a chegada desta escritora, a Elizabeth Costello, a um sítio estranho, onde tudo lhe parece um cliché e onde é suposto ela atravessar um grande portão. Para tal, ela tem de responder perante um tribunal meio kafkiano sobre as suas crenças. Perguntam-lhe em que é que ela acredita. Ela está no final da vida e, de alguma forma, tem de fazer um balanço. Este capítulo foi o que nos seduziu. Digo "nos" porque foi a Manuela Couto, uma actriz com quem costumo trabalhar e de quem gosto muito, que me mostrou este livro já com o intuito de trabalharmos a partir dele, até porque eu já tinha feito outras encenações a partir de textos não dramáticos. Esta cena pareceu-lhe muito teatral, e a mim também. E depois apaixonou-me o livro. Tem muitos aspectos que nos fazem eco enquanto artistas, porque a protagonista é escritora.
2. O trabalho criativo é uma coisa de si para si. É uma coisa de nos ouvirmos, de estarmos em sintonia connosco. E isso pressupõe um isolamento, uma capacidade de estar consigo mesmo e de se perguntar a si próprio algumas coisas. É isso que a Elizabeth Costello faz. Diz-se [na peça] que ela é obsessiva, que dedica muito tempo à escrita. Dá-se a entender que, de alguma forma, ela negligenciou um pouco os filhos. O filho ficava de fora da porta a choramingar até o choramingar se transformar num cantarolar.
Esta peça, "Elizabeth Costello", é também sobre a capacidade de nos pormos na pele do outro. "Empatia" talvez seja a palavra.
Acho que esse lado da criação existe em todas as áreas. É certo que um escritor escreve sozinho em frente à folha. Nós, no teatro, sentamo-nos todos juntos em redor de uma mesa ou, depois, num palco. Mas cada um luta com os seus fantasmas, as suas insónias, as suas dúvidas. Cada um tem de pôr em causa aquilo que vai estruturando. Vai estruturando e vai pondo em causa, num movimento incessante de aproximação. Isso é comum a todas as artes. No teatro, testamos isso colectivamente e um escritor não, mas originalmente o movimento é o mesmo. No teatro, temos esta fase de nos contaminarmos, de criar sinergias, e o que conseguimos juntos é maior do que a soma do que cada um traz. Mas é uma segunda fase. Cada um de nós, quando chega aqui, já passou pelo inferno.
3. Agrada-me muito o trabalho colectivo. Fazer algo que passa por vários filtros, que é discutido, que é negociado, que é vertido à medida do que as outras pessoas, que estão a trabalhar connosco, entendem que são as nossas ideias. Torna-se uma bola gigante de neve, uma avalancha.
No caso desta adaptação, praticamente tudo foi reescrito quando chegaram os actores. Podemos pensar - e temos de pensar - imenso em casa, mas depois as coisas começam a acontecer no confronto com os actores, que vão tornar aquilo seu. E, depois, com o público, que é o último elemento que se junta a esta equação.
Durante a montagem desta peça, tive muito a sensação - aquela sensação que deve ter o escultor ou o oleiro - de chegar a uma dada altura e ter de parar; pôr um pano por cima e dizer: amanhã volto. E voltar no dia seguinte e tornar a pegar onde deixei. Tornar a olhar. Agora, se calhar, tirava aqui, amolgava ali. Com esta peça tive muito essa sensação de que não é possível fazer tudo de uma vez.
No final dos ensaios, costumo escrever as perguntas com que fico. E elas depois acabam por responder-se por si. Não quer dizer que seja logo no dia seguinte. Não quer dizer que sejam respondidas integralmente ou de forma definitiva. Mas vem uma resposta qualquer.
4. Como actores, podemos ter um grande papel para interpretar, mas se o que está à volta não funciona, se o contexto não faz sentido, não tem interesse. Seria como olhar para um quadro e dizer: gosto deste cantinho à direita em baixo.
À medida que fui tendo mais experiência como actriz, tornei-me mais consciente do todo. E isso, se calhar, levou-me a querer participar da feitura do todo.
Agrada-me muito o trabalho colectivo. Fazer algo que passa por vários filtros, que é discutido, que é negociado.
Mas lembro-me de pensar que não queria encenar e depois, um dia, começar a pensar que gostava muito de encenar uns textos do Raymond Carver, que depois virou um espectáculo que se chamava "De que Falamos Quando Falamos de Amor", que é o título de um conto e também de um livro dele. Tudo começou com essas histórias curtas, esses pequenos contos. São textos poéticos e inconclusivos. Fazem lembrar o Tchékhov. Aliás, o Raymond Carver tinha uma admiração enorme pelo Tchékhov. Os contos do Carver falam da natureza humana. O foco está sempre nas pessoas. Se calhar, em toda a literatura, é sempre esse o foco, mas não sei dizer isto de outra maneira. Acho que ele olha sempre de um ângulo muito curioso: não julgador. Acho que é isso: não julgador. Desperta-nos compaixão. Compaixão, no sentido de nos pormos no lugar do outro, de sentir com o outro.
Esta peça, "Elizabeth Costello", é também sobre isso: sobre a capacidade de nos pormos na pele do outro. "Empatia" talvez seja a palavra.