Opinião
Os golpes de Dilma, Lula e Sócrates
Neste momento, Dilma Rousseff não está a ser acusada de corrupção. Nem de tráfico de armas, nem de homicídio, nem de canibalismo. Neste momento, não está a ser acusada de nada que dê cadeia.
É verdade que em curso está um processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por suspeitas de financiamento ilegal das suas campanhas com dinheiro alegadamente desviado da Petrobras que pode levar à anulação das eleições de 2014 e obrigar quer ao seu afastamento quer ao de Michel Temer, o seu "vice", porque concorreram juntos. Ainda nesta semana, o TSE pediu a recolha de provas na sequência da denúncia apresentada pelo PSDB, o maior partido da oposição, e dos indícios já recolhidos no âmbito da operação Lava Jato.
É também verdade que em andamento está um outro processo, agora no Supremo Tribunal Federal (órgão máximo cujas decisões são definitivas e inapeláveis), devido à controversa nomeação de Lula da Silva para ministro da Casa de Civil. A nomeação continua provisoriamente suspensa e, no limite, pode valer-lhe a acusação de ter usado os poderes que lhe são conferidos pela Constituição com "desvio de finalidade", ou seja, para tentar livrar o ex-presidente do radar do juiz Sérgio Moro.
Pode até admitir-se como provável que, perante os muitos indícios recolhidos por Moro sobre o maior esquema de corrupção do Brasil – precisamente montado na empresa pública cujo conselho de administração foi presidido por Dilma nos dez anos anteriores a esta subir a presidente do país - a Procuradoria-geral da República venha a abrir um inquérito para apurar as suas responsabilidades, por acção ou omissão, no crescimento desse polvo que levou à quase ruína de uma das empresas mais poderosas do país. E aqui, sim, pode dar cadeia.
Mas após 34 pedidos de "impeachment" que chegaram à Câmara dos Deputados só em 2015 – tendo apenas um sido aceite - o que Dilma Rousseff tem neste momento pela frente é a acusação de que cometeu irregularidades graves na gestão das finanças públicas do país que podem configurar "crimes de responsabilidade". A sanção passível é a perda de mandato e inelegibilidade por oito anos. A decisão será do Senado, num processo jurídico-político conduzido pelo presidente do Supremo que deverá estar definitivamente concluído até ao fim do ano.
E o que fez Dilma? Violou a Constituição e a Lei de Responsabilidade Orçamental por não ter ressarcido atempadamente os bancos que pagam as verbas de diversos programas do governo e prestações sociais (são as chamadas "pedaladas" que, no nosso português, se aproximará mais de desorçamentação), por ter realizado despesa sem a necessária autorização do parlamento e por ter omitido tudo isso da contabilidade pública.
Nada disto é contestado pela defesa da presidente. O que a defesa de Dilma alega é que não se trata de actos inéditos nem significativos para puderem ser punidos com perda de mandato. E alega ainda que o essencial aconteceu antes de 2015: como Dilma obteve entretanto novo mandato popular, o que lá vai lá vai – o que, sendo uma interpretação possível da Constituição, é absolutamente perversa, pois seria admitir que doravante todos os presidentes teriam "via verde" para violar as leis para ampliar as suas chances de reeleição.
O que aconteceu com Dilma a partir de 2013 e disparou em 2014 tem uma dimensão tal que não pode ser visto como resultado de meros descompassos no fluxo de transferências: é financiamento disfarçado do Tesouro por entidades financeiras controladas pelo Estado expressamente proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E o agravamento dessas manobras com a proximidade das eleições não permite que se veja outra coisa que não a intenção deliberada de melhorar artificialmente a situação do país, o que lhe permitiu fazer uma campanha eleitoral (que venceu pela menor margem da história da democracia brasileira) a prometer mais habitação social, mais salário mínimo, mais emprego, preços mais baixos para energia e menos inflação enquanto atacava os seus adversários de "austeritários". Trazendo mais perto e simplificando, imagine um primeiro-ministro português financiar a sua acção governativa em ano eleitoral com um empréstimo de mil milhões de euros da CGD e ninguém saber disso porque a operação pura e simplesmente não tinha reflexo contabilístico. Isto não é grave, é gravíssimo.
Escassas semanas depois das eleições, o governo libertava a publicação de dois indicadores que deveriam ter saído meses antes e o Brasil sabia que, pela primeira vez em décadas, tinha mais défice e até mais miséria. O quadro rosa pintado por João Santana, o seu director de campanha (e de José Eduardo dos Santos de Angola e de Chaves e de Maduro da Venezuela), agora também detido pela Lava Jato, começava a perder cor. Depois foi o que se viu, e ainda vê.
De lá para cá, o défice orçamental quase quadruplicou para 10% do PIB, a dívida pública passou de 60% para quase 80% (e seria aqui preciso acrescentar o endividamento directo das empresas públicas não cotadas – informação que o FMI se queixa recorrentemente de não ser acessível), o Brasil perdeu o grau de investimento que havia conquistado em 2008 com todas as agências de rating a classificar hoje de "lixo" a dívida emitida pelo Tesouro brasileiro (com reflexos tremendos nas condições de financiamento de todas as empresas e famílias brasileiras), a inflação disparou para dois dígitos e, para tentar contrariá-la, os juros escalaram para mais de 14%. No final deste ano, o PIB brasileiro terá caído 8% desde 2014 e o desemprego estará acima dos 10%. O Brasil tem hoje lá dentro um Portugal de desempregados, 10 milhões.
É óbvio que o contexto externo penalizou (embora, note-se, o Brasil não seja auto-suficiente em petróleo), como é óbvio que a Lava Jato provocou danos colaterais na economia, ao prender os grandes empresários da construção cujas empresas ficaram a meio-gás.
Tristemente óbvio é também a existência de um número impressionante de representantes do povo brasileiro a contas com a justiça. Haverá hoje cerca de 60 políticos com "foro privilegiado" suspeitos de corrupção. Entre eles estão os presidentes das duas câmaras do legislativo: o senador Renan Calheiros (PMDB), alvo em sete inquéritos, e o deputado Eduardo Cunha (PMDB) que é hoje também presidente da comissão parlamentar da CPLP, alvo em três processos, tendo sido o primeiro dos envolvidos na Lava Jato a ser transformado em réu pelo Supremo.
Com a detenção de Delcídio do Amaral, o "petista" que liderava até há dois meses a bancada do governo no Senado e que resolveu pôr a boca no trombone e converter-se no "Pananá Papers" do Brasil, serão agora 13, entre 81 senadores, os que viram os seus nomes directa ou indirectamente envolvidos em suspeitas de crime por gente que acordou "delações premiadas" no âmbito da Lava Jato. Quase todos eles (a excepção é Aécio Neves, líder do PSDB, o maior partido da oposição derrotado por Dilma/Temer) são senadores do PT e dos partidos com quem até há um mês a Presidente governava: PMDB e PP.
Será que Dilma pode aliar-se e governar com "bandidos" e "corruptos" mas não pode ser julgada por eles? A maioria é suspeita de ter cometido crimes menos graves do que aqueles por que está indiciado José Sócrates. Será que vamos passar a ouvir Miguel Sousa Tavares chamar de "bandido" e "corrupto" ao ex-primeiro-ministro? Se for coerente, sem dúvida.
Todo este caldo pleno de contradições e de risco de tumulto não pode servir para se branquear o mais óbvio: fraudar dados sobre a situação financeira de um país, em vésperas de eleições e com as consequências que se conhecem, é índicio de "crime de responsabilidade" mais do que suficiente para se desencadear um processo de "impeachment".
Nada disto é golpe. Às vezes é preciso dizer o óbvio: o "impeachment" é um procedimento previsto na Constituição brasileira única e exclusivamente para presidentes eleitos, precisamente para que o voto popular não seja salvo-conduto para a impunidade. "Mostrámos que é possível o mesmo povo que elege um político conseguir destituí-lo. Eu peço a Deus que nunca mais o povo brasileiro esqueça essa lição". Adivinhe quem disse isto depois da queda de Fernando Collor de Mello?
Guiada por esse mesmo Lula que hoje pede aos militantes e simpatizantes do PT que tomem as ruas, a mulher que viu passar a maior rede de corrupção debaixo do seu nariz na Petrobras e que não viu chegar nem tomou medidas para prevenir a maior recessão em 100 anos nunca mostrou disposição para assumir os seus erros. Pelo contrário, acusa a conjuntura internacional e a instabilidade política – que atribui à acção da oposição - pelas dificuldades do país. E continua a comportar-se como se fosse "dona daquilo tudo".
Sete dias depois de ser alvo das maiores manifestações populares da história do Brasil e pouco depois de o Ministério Público de São Paulo ter pedido (de forma desastrosa, diga-se) a prisão preventiva, Dilma tentou nomear o seu criador para algo equivalente a "primeiro-ministro", o que garantiria a Lula "foro privilegiado" num momento em que, sob a alçada do juiz Moro, podia ter a sua prisão como iminente.
E quatro dias depois de mais de 70% dos deputados terem dado luz verde ao início do processo de "impeachment", cumprindo as normas (o "rito") previamente estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal onde oito dos seus 11 membros foram nomeados por Dilma ou por Lula, a presidente viajou para Nova Iorque para internacionalizar na ONU a narrativa do golpe. Como acontece no Brasil sempre que o presidente deixa o país, o comando - incluído o das Forças Armadas - passa para as mãos do "vice", no caso Michel Temer, apontado por Dilma como o chefe dos golpistas. A viagem de Dilma é, portanto, a mais concreta prova de normalidade institucional. É, em si mesma, a negação da narrativa da presidente.
A democracia exige vigilância. Os democratas submetem-se a ela. O que os recorrentes "golpes" denunciados por Dilma, Lula ou Sócrates revelam é que verdadeiramente não o são. Só o terão podido aparentar quando ainda tinham "A Confiança no Mundo" da impunidade.
Corrige: Tribunal Superior (em vez de Supremo) Eleitoral