Opinião
Os partidos também morrem
Qualquer que fosse o governo, Portugal estaria neste momento de candeias às avessas com Bruxelas para fazer um Orçamento perfeitamente coerente com as regras e compromissos europeus, o que significaria reduzir anualmente o défice estrutural em pelo menos 0,5 pontos percentuais a caminho do equilíbrio e manter o nominal abaixo de 3% do PIB.
No Outono, as previsões europeias apontavam para uma melhoria marginal do défice nominal de 3% em 2015 para 2,9% em 2016 e para um novo agravamento do défice estrutural, de 1,8% para 2,3% do PIB. Isso significava, logo à partida, que qualquer promessa de "virar a página da austeridade", dentro - e mais ainda fora - do euro, era uma quimera. Poder-se-ia fazer uma austeridade diferente, até menos austeridade, mas na justa medida em que se fizessem cortes – e mais amplos - noutras áreas da despesa do Estado e/ou se aumentassem impostos, taxas e taxinhas.
Desde Abril até esta semana, ouvimos quatro metas socialistas para o défice de 2016: primeiro 3% do PIB com um crescimento de 2,4%, depois 2,8% e 2,6% com um crescimento de 2,1%, e agora 2,4% com um crescimento de 1,9%. Tomando os números como bons, isso significa que o PS está conscientemente a impor ao país um conjunto de medidas que significam mais austeridade e menos crescimento a troco do apoio das extrema-esquerda para estar no poder.
Todos os organismos, nacionais e internacionais, que se pronunciaram sobre os planos orçamentais do PS desaprovaram-nos, nos seus números e nas suas orientações. A "slot machine" de Mário Centeno – gasta um euro, saem quatro – não convencerá nem o próprio. Nos cálculos da UTAO, o ilusório "adeus à austeridade" exigirá que o Estado peça emprestado mais 11 mil milhões de euros do que estava previsto há apenas três meses.
A aliança do PS com os que diabolizam a Europa, os mercados, a banca e os capitalistas está, afinal, a querer ficar mais dependente de todos eles e fazer mais dívida para ser paga pelos governos que se lhe seguirem – e talvez para ter ainda mais argumentos para logo a seguir exigir à Europa, aos mercados, à banca e aos capitalistas que perdoem o dinheiro que agora se lhes pede.
O PS que há menos de cinco anos pediu a Bruxelas um empréstimo de mais de 70 mil milhões de euros para evitar a bancarrota, que tem defendido mais integração, que é até favorável a um governo europeu - o que significa dar real direito de veto à Comissão Europeia sobre esboços de orçamentos - é o mesmo PS que destrata o Conselho de Finanças Públicas (que, em bom rigor, deveria não emitir um parecer mas fazer os cenários macro sobre os quais os governos fariam opções de políticas). E é o mesmo PS que manda para Bruxelas um orçamento com contas marteladas e em "risco de grave incumprimento" das regras acordadas. Nenhum país, nem França, nem Itália, nem Espanha ousou tanto: os seus primeiros esboços de orçamentos também foram recusados, mas por mero "risco de incumprimento". Nenhum deles tem rating "lixo" nem acaba de sair de um resgate.
Isto não é negociar. Negociar passa por explicar com transparência o que se pretende alcançar, tentando cumprir com boa-fé as regras acordadas, podendo ganhar-se com isso também credibilidade para ser-se agente da sua mudança. Foi isso que Vítor Gaspar tentou, e até poupou ao país dois mil milhões de euros em juros. Os partidos também morrem, e o PS europeísta estará a definhar. Ainda não será eurocéptico, mas parece ser hoje conduzido por uma tropa de eurocínicos.
Teremos um quadro mais completo e definitivo no fim de Abril, quando António Costa (que, desavisadamente, é o ministro das Finanças deste governo) entregar a Bruxelas o planeamento orçamental para 2017 e 2018. Veremos então se continuará a perder pontos à toa na credibilidade externa, incapaz de domar a agenda radical daqueles de quem depende para se manter no poder.
O ritmo, a amplitude e o desatino da reversão de medidas têm sido alucinante. Na Educação (fim de exames, novos exames, novas regras de colocação de professores, travões na autonomia das escolas), na Função Pública (reposição integral de salários num só ano, regresso à semana de 35 horas, fim da mobilidade, possibilidade de reforma antecipada aos 55 anos), na reversão das concessões de transportes (leia aqui o que escreve Vital Moreira), na reposição dos complementos de reforma nas empresas públicas, na tentativa de renacionalização da TAP, na reposição de viagens gratuitas para os familiares dos funcionários da CP, na subida do salário mínimo acima da produtividade esperada, no regresso de quatro feriados... Neste momento, é a cauda que abana o cão. Em breve, a cauda pode cair porque a motivação para abanar o cão estará saciada.
O pecado original estará na narrativa criada por António Costa para legitimar a sua aliança com a esquerda radical, porque ela assenta na negação de uma parte fundamental da realidade portuguesa - de parte das suas limitações (dívida elevadíssima, dependência de financiadores externos, fraca competitividade, instituições frágeis), mas também de parte das suas conquistas recentes. Ao fim de décadas no vermelho, o saldo externo é positivo, assim como o saldo orçamental primário (ou seja, depois de pago o serviço da dívida), o desemprego caiu para menos de 12% em Dezembro (valor de 2010) e a economia terá crescido no ano passado 1,5%. É bem verdade que é quatro vezes menos do que cresceu a Irlanda e metade do que aqui ao lado em Espanha, mas é 50% mais do que Portugal cresceu em média entre 2000 e 2010, período em que a dívida pública quase triplicou e se injectou milhares de milhões de fundos europeus.
Ou seja, ao contrário do que António Costa alegou e alega, ainda não é possível "virar a página da austeridade" e não é preciso inverter nenhum "ciclo de empobrecimento", porque ele já foi invertido - desejável é acelerar e consolidar a tímida inversão que vêm de trás. E ter uma noção de rumo. A gestão dia-a-dia dos interesses do BE, PCP e Verdes – que mereceram menos de 20% dos votos – é necessariamente uma política sem tino, e ela é hoje o maior risco para o país.
Como bem me recorda um sábio conselheiro político, "a lógica da competição política é o poder, não é o bem comum". Isso ajudará a explicar porque António Costa "não está apoquentado" ao mesmo tempo que o presidente da Comissão Europeia se diz "muito preocupado". Depois do Syriza, o euro ficou com porta de saída. António Costa parece que não sabe. Vai amanhã a Berlim. Ouvirá que novos governos têm sempre o benefício da dúvida, mas que eleições num país não mudam regras acordadas por 28. Ouvirá também que "um bom europeu é o que respeita os tratados e a legislação nacional e ajuda a que a estabilidade na Zona Euro não sofra danos".
Angela Merkel é poderosa também porque é previsível, e tem experiência q.b. para topar ao longe um europeísta mais interesseiro do que interessado. Na semana passada recebeu Matteo Renzi em busca dos seus bons ofícios para que Roma tivesse mais flexibilidade orçamental, oferecendo como moeda de troca maior empenho de Itália no controlo da fronteira externa de Schengen e boa-vontade nas negociações para tentar manter o Reino Unido na União. Nesta sexta-feira, é capaz de receber mais um.