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Eva Gaspar - Jornalista egaspar@negocios.pt 25 de Fevereiro de 2016 às 22:05

Mário Centeno, você quer um segundo resgate?

Bruxelas só terá margem de manobra para ir pela via menos arriscada da "cenoura" e evitar desencadear o "chicote" das sanções se Centeno der garantias firmes e credíveis de que, neste ano e, pelo menos, no seguinte o défice ficará aquém dos 3%. E Centeno não deu.

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"Devia ler os comunicados". A sugestão, em jeito de admoestação, foi feita nesta semana pelo ministro das Finanças ao deputado do CDS Hélder Amaral quando este lhe perguntou sobre o Plano B que prometeu a Bruxelas executar "quando necessário". "Devia ler os comunicados. Se o fizesse facilitava as suas perguntas e as minhas respostas. Mas não só não leu como não se apercebeu de que no ano passado o défice estrutural deteriorou-se 0,6%", respondeu. Sigamos, pois, a sugestão de Mário Centeno: ler comunicados, legislação e, de caminho, fazer o filme das declarações do ministro.


Em 10 de Dezembro, Mário Centeno reconhecia que o défice de 2015 ficaria em 3% do PIB – só precisava de ser um gestor de mão firme até ao fim do mês. Cumprir-se-ia, assim, uma das exigências para Portugal aspirar sair do procedimento dos défices excessivos, compromisso que Passos Coelho assumira como "ponto de honra". Cumprir o outro requisito, igualmente essencial, está nas mãos de Centeno: garantir que o défice deste ano e de, pelo menos, os dois seguintes se manterá de forma sustentável aquém desse limite máximo, permitindo a redução da dívida e caminhando para o equilíbrio orçamental – é essa a regra do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC); violar os 3% devia ser a excepção.

Sair do procedimento por défice excessivos é um passo crucial para o país sair também do "radar" mais apertado dos mercados, eventualmente sair de "lixo" de mais agências de rating e para se tornar mais atractivo a investidores nacionais e estrangeiros. Até o governo ganharia graus de liberdade. Se Portugal passar do "braço correctivo" do PEC (onde está) para o "preventivo" quem o governa pode apostar no investimento produtivo (para aproveitar o Plano Juncker, por exemplo) e ter deste modo mais tempo para reduzir o défice,  diluindo a austeridade até conseguir fazer um primeiro Orçamento equilibrado e verdadeiramente cumpridor da Constituição, em que as despesas igualam as receitas, sem contrair ainda mais dívida. Já se o país permanecer com o défice acima de 3%, o governo só pode eventualmente obter mais tempo para a consolidação orçamental se fizer reformas estruturais – a das pensões é a candidata mais óbvia, mas alguém tem ouvido falar nela?

Mas voltemos ao ministro. Ainda não era Natal, saiu mais um esqueleto do armário: a resolução do Banif. Com ela chegou o primeiro orçamento (rectificativo) de Centeno para acomodar mais 2,2 mil milhões de euros de dinheiro dos contribuintes enterrados num banco, mais (sabe-se agora) um empréstimo encapotado de 1,8 mil milhões do Santander ao Estado que engrossará a dívida pública e a constatação de que o défice saltara para valores superiores a 4%. Ainda assim, em 21 de Dezembro, o ministro mantinha a convicção de que Bruxelas separará o trigo do joio: sem Banif, o défice de 2015 ficará em 3% pelo que não deverá ter consequências na avaliação sobre a saída do procedimento dos défices excessivos, dizia. Nada óbvio.

Se é verdade que Bruxelas tem encarado injecções de capital público com o propósito de "garantir a estabilidade financeira" como medidas pontuais e temporárias, caso o défice não fique em 3% ou abaixo dele – e sabemos que não ficou, desde logo devido ao Banif – é quase certo que será um "adeus" ao princípio do fim do procedimento dos défices excessivos. Neste contexto, Bruxelas terá necessariamente de ponderar apertar o "crivo" a Portugal – a Comissão Europeia acaba de ganhar dentes mais afiados precisamente para prevenir resgates e que países laxistas adormeçam à sombra da bananeira, agora ampliada pelas compras de dívida do Banco Central Europeu, e é a sua credibilidade que está aqui também, e muito, em jogo. 


Falhada a meta do défice nominal dos 3%, Bruxelas baixa à segunda linha de critérios e avalia se o esforço de consolidação orçamental, medido pela variação do saldo estrutural, foi ou não cumprido – e aqui, o legado de Passos Coelho terá sido claramente desfavorável.

Teremos de esperar pelo fim de Março (pela notificação do INE) e possivelmente pelo fim de Abril (pela certificação do Eurostat) para conhecer os números definitivos da execução orçamental de 2015. Mas na resposta que Mário Centeno deu à pergunta que Hélder Amaral não fez percebe-se que o actual governo se prepara para passar todas as culpas para o anterior quando Bruxelas apertar o cerco ao país, provavelmente já em Maio.

Perante a não saída do procedimento dos défices excessivos, a opção mais benigna passa por Bruxelas dar mais algum tempo (um ano?) para o indicador ficar abaixo dos 3%, enquanto prescreve ao governo, e eventualmente "recomenda" ao parlamento português, um roteiro de governação destinado a "assegurar uma correcção duradoura do défice excessivo", sujeitando a sua execução a um regime de avaliação quase contínua. Terá sido para falar dessa opção que Jean-Claude Juncker recebeu na semana passada António Costa. 


A coisa até tem um nome simpático -"parceria económica"- junta eventuais empréstimos do Banco Europeu de Investimento e remete para políticas de crescimento e de emprego sustentáveis. Mas não dará mais para disfarçar que, afinal, a austeridade ainda tem várias páginas por escrever num país com economia e instituições frágeis, onde o Estado continua a gastar mais do que recebe, o que significa aumentar uma dívida que supera os 230 mil milhões de euros – e, não, não é por causa da troika (sem ela, o ajustamento teria sido muito mais brutal), é mesmo porque há quatro décadas todos os governos acumulam défices e a economia patina.

Essa constatação dificilmente passará pelas gargantas trovadoras do BE e PCP, agora afinadas a cantar a ilusão de perdões de dívida indolores, depois de terem encarnado a Rainha Santa a distribuir pão aos pobres. E isso ajuda a perceber os recentes apelos socialistas para que o PSD saia do "casulo" da oposição e se disponha à governação, quando ainda em Outubro António Costa recusou um bloco central por divergências programáticas profundas. 

Bruxelas só terá margem de manobra para ir por essa via menos arriscada, ainda da "cenoura", e evitar desencadear a fase dura do "chicote" das sanções – inaugurando um expediente capaz de gerar o efeito perverso de acelerar o cenário de segundo resgate (quem emprestará a um país ameaçado de multas pelo regulador da moeda única?) e de ressuscitar o debate sobre a saída de países do euro – se Centeno der garantias firmes e credíveis de que, neste ano e, pelo menos, no seguinte o défice ficará aquém dos tais 3%. E Centeno não deu.

O esboço orçamental, que começou por ser recusado por estar em risco de "grave" violação do PEC (o défice passaria para 3,4% do PIB em 2016 e 3,5% em 2017), acabou por passar à tangente, depois de o governo ter apresentado no espaço de uma semana quase mil milhões de euros de medidas de austeridade adicionais, quase todas a significar mais impostos.

Divulgadas nesta semana, as actas da reunião do colégio de comissários, de onde saiu "luz amarela", revelam que a corda das regras foi esticada ao limite: "alguns" comissários chegaram a defender o chumbo puro e duro dos planos de Centeno; o presidente Juncker confessou que deixá-los passar acabou por ser uma "decisão política, no bom sentido da palavra"; e Pierre Moscovici – que alguns correligionários socialistas em Lisboa apresentam como o "polícia bom" de Bruxelas (o "mau da fita" é Valdis Dombrovskis, letão e conservador) – foi claro ao afirmar que "existe ainda o risco de o procedimento por défices excessivos ser reforçado relativamente a Portugal e de, no longo prazo, serem impostas multas".

Quer isto dizer que Bruxelas vê como muito provável que o Orçamento de Centeno, mesmo na versão "austera de esquerda", leve o défice para a zona de perigo dos 3% (em vez dos 2,2% que lá figuram) e desconfia da capacidade de o Governo (e do BE, PCP e Verdes) assumir políticas conducentes a uma redução sustentada e credível do novo endividamento do Estado para os anos seguintes, no âmbito da actualização do programa de estabilidade, que António Costa terá de entregar até ao fim de Abril.

Foi esse o receio que levou o Eurogrupo a forçar Mário Centeno a prometer que "desde já" trabalhará num plano B para implementar "quando necessário".  A pergunta do deputado Hélder Amaral foi, por isso, perfeitamente pertinente. Mário Centeno sabe que, na avaliação presente dos seus colegas ministros, aplicar um plano B a um Orçamento que ainda nem entrou em vigor não é uma questão de "se" mas de "quando". Mário Centeno também sabe que terá de submeter esse plano B até Abril e que o Eurogrupo voltará a reexaminar a situação portuguesa em Maio – "or earlier, if needed", foi-lhe também dito naquela sala, enquanto os juros da dívida pública portuguesa galgavam nos écrans da Bloomberg. 

Com a herança de legitimidade que lhe deram muitos dos seus antecessores, Mário Centeno pode recorrer à auto-desculpabilização à custa da culpabilização dos outros. Mas não pode querer que deputados e jornalistas deixem de lhe cobrar explicações e transparência pela enorme responsabilidade que carrega num país ainda à beira do precipício de um segundo resgate.

Devia reler os comunicados, senhor ministro. E partir do pressuposto que outros os lêem porque faz parte dos seus deveres. E prestar contas no Parlamento e perante os português pelos compromissos que assume cá dentro e lá fora. Se o fizesse facilitava as minhas perguntas. Quanto às respostas de um genuíno ministro das Finanças, deveria saber que raramente são fáceis.

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