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22 de Setembro de 2006 às 13:59

Apertar a mão ao diabo

A macabra situação vivida no Darfour, no Sul do Sudão, uma zona não muçulmana, repete de forma chocante o que se passou no Rwanda e no Kosovo.

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O acordo de paz para o Darfour assinado em Abuja, na Nigéria, não foi subscrito por todas as facções. Duas delas, com considerável poder militar e representação étnica recusam o acordo sem garantias de participação no desarmamento das milícias pró governamentais, os Janjaweed, de origem árabe, criadas, organizadas e armadas pelo Governo de Omar Hassan al-Bashir. Estas milícias são responsáveis por mais de dois milhões de desalojados, centena e meia de milhar de mortos de um número incontável de violações de mulheres não árabes.

No Rwanda, em Outubro de 1993, após a assinatura dos Acordos de Arusha, a 4 de Agosto de 1993, a ONU estabeleceu a UNAMIR (Missão de Assistência das Nações Unidas ao Rwanda). Meses depois, após um crescendo de incitações à violência, a ONU recebia repetidos avisos do general Dallaire sobre o armamento das milícias hutus e os riscos do genocídio que se seguiu. Foram 100 dias de horror, retratados no filme "Hotel Rwanda" e no livro de Dallaire. A ONU porém foi inamovível mantendo as regras de engajamento - isto é mantendo as ordens de a UNAMIR não abrir fogo. Pior, promoveu a retirada de todos os europeus, prometeu e falho o envio de reforços a Dallaire que lhe permitiriam agir antes dos massacres. Finalmente por proposta dos EUA e da Grã Bretanha retirou os "Capacetes Azuis". Clinton veio a considerar isso um dos maiores desastres da política externa americana. Mas era tarde.

Jan Egeland o responsável do ONU pela ajuda humanitária ao Darfour anda há mais de dois anos a advertir que a região se irá tornar uma catástrofe humanitária comprável – ou mesmo maior – que a do Rwanda. Os comboios de apoio da ONU são atacados, trabalhadores humanitários ameaçados e até mortos pelas mesmas milícias que pelo acordo de Abuja o Governo sudanês se comprometeu a desmantelar. As milícias Janjaweed são verdadeiros esquadrões da morte que já actuam dois lados da fronteira: no Sudão e no Chade onde se refugiam populações da região de Darfour.

O Governo sudanês recusa alargar o âmbito da força da ONU que monitoriza o acordo com o MLPS de Salva Kiir, ao Darfour, e seu eventual reforço, em cooperação com a União Africana. O Conselho de Segurança ameaça com sanções e aprovou uma força de manutenção de paz. Inacreditavelmente para ONU esta força só poderá intervir se o Presidente Omar Hassan al-Bashir autorizar a sua entrada.

Slobodan Milosevic demonstrou que não fazia parte da uma solução para a região; ele foi um dos problemas dos Balcãs e o mais incontornável. Omar Hassan al-Bashir já demonstrou para além de quaisquer dúvidas razoáveis que não faz parte da solução da situação no Sul do seu país. Omar Hassan al-Bashir não pretende controlar nem desmobilizar as milícias que criou. Milhões de seres humanos no Darfour já teriam morrido sem o auxílio alimentar da Comunidade Internacional. Omar Hassan al-Bashir não deu quaisquer sinais de se incomodar com essa situação.

Slobodan Milosevic foi um parceiro no acordo de Dayton para a crise bósnia que ele próprio fomentou e alimentou. No Kosovo concordou com a presença de dois mil observadores civis da OSCE e o sobrevoo de observação por aviões desarmados. Reduziu ao mínimo a retirada de tropas sérvias do Kosovo, remeteu a policiamento para as autoridades locais e prometeu umas vagas eleições para 1999. Ao mesmo tempo fomentava a limpeza étnica no Kosovo onde após muitas pressões e perante a passividade da ONU, a NATO enveredou pela acção militar com o objectivo de proteger os kosovares das forças e milícias sérvias.

Milosevic acabou em Haia, no Tribunal Penal Internacional para os crimes contra a Humanidade; os fautores e instigadores dos massacres de tutsis no Rwanda estão em julgamento por crimes de genocídio. A actuação de Omar Hassan al-Bashir em nada difere e o seu fim deveria ser frente a um Tribunal, julgado por genocídio e crimes contra a humanidade.

No Rwanda, a ONU retirou quando deveria ter reforçado posições e recebido um mandato proactivo que evitasse mais de um milhão de mortos e um número indeterminado de refugiados. No Kosovo, a NATO assumiu a protecção do Kosovo e a sua intervenção militar foi decisiva evitando a extensão do genocídio.

No Sudão, a tibieza da ONU raia a cumplicidade com os criminosos das milícias Janjaweed. A força da ONU com um mandato de implementação de paz ou simplesmente de protecção da população perseguida não deve ter de passar pela autorização do criminoso. A União Africana, ainda verde nesta sua nova forma, pode e deve dar um importante contributo para a força de protecção aprovada pelo Conselho de Segurança. O sul do Sudão é uma terra sem lei. Se o Presidente se declara incapaz de controlar os seus esbirros e impor a lei e ao mesmo tempo recusa a entrada da ONU, a força pode avançar a partir do Uganda. A protecção das populações, concentradas em campos de refugiados não é uma dor de cabeça. Uma colaboração militar ocidental pode permitir combater eficazmente as milícias, de grande mobilidade, graças aos meios aéreos. Se no Kosovo os tanques de Milosevic eram um alvo fácil para os F-16 no Darfour as milícias a cavalo são um alvo para os helicópteros de combate "Apaches" ou similares.

O facto de o desastre humanitário do Darfour fazer menos noticia que a criminalidade ou as banalidades políticas com que as televisões nos bombardeiam não significa que ele não exista. Seja real e atinja milhões de pessoas. A intervenção militar é imperiosa e se necessário até se deve equacionar para o Darfour um estatuto semelhante ao Kosovo.

Os crimes têm de terminar. E nunca terminarão enquanto houver quem aperte a mão ao diabo.

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