Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

[322.] "AIDS ist ein massenmörder"

Mais uma campanha concebida e desenvolvida para ser "polémica" e obter notoriedade ainda antes de estar no ar: "A SIDA é um assassino de massas". Os 46 segundos do anúncio para cinema e TV mostram um casal numa longa cena sexo, até se revelar no final...

  • ...
Mais uma campanha concebida e desenvolvida para ser "polémica" e obter notoriedade ainda antes de estar no ar: "A SIDA é um assassino de massas". Os 46 segundos do anúncio para cinema e TV mostram um casal numa longa cena sexo, até se revelar no final que o macho não é outro senão Adolf Hitler. Três cartazes da campanha mostram Hitler, Stalin e Saddam Hussein no mesmo acto.

A campanha desenvolvida na Alemanha visa sensibilizar os observadores para o sexo seguro, evitando tornarem-se novas vítimas do vírus da SIDA, "assassino de massas". O mito que a campanha transporta é antigo: a entrada em corpos inocentes do Mal em pessoa, o Diabo. A Inquisição perseguia as mulheres que se dizia "dormirem com o diabo". Recordo dois exemplos do cinema de ficção: no filme Rosemary's Baby (Roman Polanski, 1968), Mia Farrow aparece grávida do belzebu, e na tetralogia Alien (Riddley Scott, 1979; James Cameron, 1986; David Fincher, 1992, Jean-Pierre Jeunet, 1997), Sigourney Weaver trava uma luta sem quartel contra o mais maléfico dos extraterrestres, terminando o combate no terceiro episódio com o seu próprio sacrifício ao descobrir que está "grávida" de um "alien". A controvérsia sobre a actual campanha resultou do estigma que os anúncios fazem recair sobre os infectados com a doença, diabolizando-os.

Nesta campanha, o diabo é representado pelos três ditadores, sendo um pouco exagerada a inclusão de Saddam - um ditador sangrento mas não comparável com dois dos maiores assassinos em massa da História, Hitler e Stalin. Estou convencido de que os publicitários terão excluído Mao Zedong para não terem as autoridades chinesas à perna, apesar de a carnificina maoísta ter sido infinitamente superior à do ditador iraquiano.

A publicidade e a propaganda têm de tornar concreto o que é abstracto: neste caso, a prevenção da SIDA "coisifica-se" numa cena de sexo em que nos é sugerido que uma mulher desconhece estar a fazer sexo com um portador do vírus. Nós, os espectadores, sabemos no final do anúncio, e ele, o portador, também sabe: basta ver como nos olha Hitler no final do "spot" e como ele e os seus "colegas" ditadores nos encaram nos cartazes, sem que a parceira dê por isso. O olhar que os ditadores trocam connosco parece tornar-nos cúmplices do crime. As imagens estão construídas para considerarmos que a mulher ignora com quem fornica. Essa parte da narrativa é difícil de aceitar tendo em conta a personagem com quem faz sexo: quando se inventa um argumento, convém que ele seja verosímil do princípio ao fim, já dizia Aristóteles há mais de dois milénios.

Na narrativa, os ditadores da campanha sabem que estão a espalhar o vírus: é por isso são assassinos de massas. É curioso que as "massas" sejam aqui associadas a "micróbios" e aos espermatozóides; esta associação entre a multidão e os seres minúsculos existe desde que o microscópio revelou, no século XIX, o mundo novo do infinitamente pequeno. Mas acho que a ligação está um pouco ultrapassada.

A campanha parece ajustada ao objectivo de recordar a necessidade de fazer sexo seguro com parceiros desconhecidos, mas falha no ponto incómodo em que (os) portadores da SIDA são associados a criminosos, o que é lamentável. Já lhes basta o que sofrem. O erro do argumento poderia ter sido facilmente evitado. Também irrita que os ditadores criminosos sejam apresentados como grandes conquistadores; metáfora ou não, complica a boa apreensão da mensagem.

Os publicitários são os primeiros a saber que constroem ficções. E, assim sendo, devem antever todas as possíveis interpretações das suas estórias. Neste caso, parece ainda evidente que, para além de o infectado ser associado ao crime (e logo de massas), a mulher é apresentada pelo estereótipo habitual: "boa como o milho", mas estúpida o suficiente para não ter reconhecido o "gajo" com quem foi para a cama.
Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio