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06 de Novembro de 2017 às 20:45

Incêndios - (CVI)

A verdade é que depois deste Verão, continuar a percorrer o mesmo caminho seria a demonstração definitiva da incompetência das actuais elites políticas.

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1. Nasci e cresci numa aldeia beirã, situada entre Gouveia e Seia, a poucos quilómetros do sopé da serra da Estrela. Para mim, o nível dramático - absurdo - de devastação provocado pelos incêndios tem uma dupla leitura: por um lado, representou o "golpe de misericórdia" num "mundo" que vinha a definhar há muitas décadas; por outro, esta tragédia fez acabar o tempo em que era possível assistir com passividade à gradual - mas inexorável - fragmentação e agonia económica e social do que, a partir dos grandes centros urbanos, chamamos "o interior". Como se um país com a dimensão do nosso se possa dar ao luxo de ignorar regiões que podem dar um contributo único e importante para o movimento global de desenvolvimento económico e social.

 

2. Além dos erros de avaliação, da impreparação, do pesado lastro dos interesses instalados e das ainda mal compreendidas alterações climáticas, o que aconteceu foi também o resultado do abandono das "terras". Abandono que reflecte a fragmentação do modelo económico e social tradicional. A pequena agricultura coexistia com uma malha de pequenos negócios e actividades que se articulavam e suportavam mutuamente. Uma produtividade medíocre era a garantia de baixos níveis médios de vida e de largas manchas de pobreza. Este "mundo" sofreu um forte abalo com as ondas de emigração da década de 60, do século passado. Guardo viva a memória do grupo de homens e de rapazes - pouco mais velhos do que eu - que numa véspera do ano novo partiu "a salto"(*) para França. Na altura, não percebi o alcance do que estava a acontecer. Para um regime político bloqueado e sem saídas, era a descompressão social e política e, sobretudo, uma fonte crucial de reservas cambiais; para as comunidades locais, era o futuro que lhes fugia. O poder político democrático foi até hoje incapaz de pôr de pé uma política articulada, capaz de inverter o processo de desagregação económico e social que se seguiu ao abandono e ao envelhecimento dos que ficaram. A desertificação económica e social só não é generalizada devido a dois tipos de factores: os esforços de alguns autarcas competentes e empenhados e o retorno das gerações que deixaram o país, a partir do início dos anos 60. Reformados, voltaram para finalmente viver o sonho com que partiram. Com as poupanças de uma vida, construir casa e comprar terra ou explorar um pequeno negócio, o que deu um alento temporário às economias locais. Sonho nalguns casos cruelmente destruído pela crise bancária ou pelos incêndios. A verdade é que depois deste Verão, continuar a percorrer o mesmo caminho seria a demonstração definitiva da incompetência das actuais elites políticas. As soluções para a situação actual têm de ser a dois tempos: assegurar um apoio urgente às comunidades atingidas; lançar um programa capaz de ultrapassar os bloqueamentos e de reorientar de forma sustentada a economia do "interior". Estão a ser tomadas medidas importantes, mas continua a faltar - conheço o que é público - uma visão global e integrada para o futuro. Uma visão que parta dos recursos das diferentes regiões - floresta, vinha, ovinocultura e seus derivados, património natural, cultural e histórico - e que crie um contexto - administrativo, financeiro, fiscal e de infra-estruturas - capaz de atrair investimento e de induzir um processo sustentado de revitalização e crescimento. Programa que para ter impacto em tempo útil tem de mobilizar o talento e os instrumentos disponíveis. Questões a continuar em próximo artigo.

 

(*) - "a salto": ilegal/indocumentado"

 

Economista

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