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20 de Abril de 2021 às 09:40

Os dilemas pós-covid da Europa do euro – (I)

Os Estados do euro têm podido emitir volumes recorde de dívida – a taxas historicamente baixas – no âmbito das suas respostas à pandemia, atingindo níveis de endividamento que na Zona Euro ultrapassam os 100% do PIB.

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1. Apesar dos atrasos na vacinação, o segundo semestre deverá assistir ao relançamento gradual da actividade económica. Mais difíceis de avaliar são, neste momento, os danos estruturais e as cicatrizes económicas e sociais que a pandemia vai deixar, na medida em que estas tendem a variar em função de três tipos distintos de factores: a maior ou menor eficácia com que a pandemia tem sido enfrentada; a estrutura produtiva implantada, em particular o peso dos sectores mais vulneráveis ao choque pandémico – sobretudo turismo e actividades-satélites; por fim, a natureza e a dimensão dos apoios à economia, mobilizados pelos governos no âmbito dos seus esforços de contenção dos efeitos económicos e sociais da pandemia.

No entanto, para além destas dificuldades, verifica-se um consenso alargado em relação às grandes questões com que a Europa do euro se vai debater no pós-covid. Questões que, no essencial, já se colocavam desde a crise financeira, mas que o choque pandémico veio agudizar. Em particular, o futuro da Europa do euro vai ser fortemente determinado pelas respostas que vier a dar a três dessas questões: aos elevados níveis de endividamento com que a generalidade das economias do euro vai “sair” da actual crise; à situação orçamental que vai resultar das pressões actuais sobre a despesa e sobre os déficits públicos; por último, a resposta que encontrar para a eficácia marginal decrescente da acção do BCE, na ausência de uma política fiscal activa.

2. Para compreendermos a complexidade da situação que está a emergir da pandemia, é apenas necessário ter presente o circuito que tem vindo a ser “alimentado” pelo BCE desde a crise financeira, tendo como “pólos” os Estados do euro, o próprio BCE e os bancos comerciais: na verdade, através das suas operações de QE, o BCE mantém um controlo apertado sobre os mercados primários de dívida pública. Deste modo, os Estados do euro têm podido emitir volumes recorde de dívida – a taxas historicamente baixas – no âmbito das suas respostas à pandemia, atingindo níveis de endividamento que na Zona Euro ultrapassam os 100% do PIB. Por sua vez, os bancos comerciais têm vindo a acumular nos seus balanços volumes crescentes de dívida pública, sob o impulso de três tipos de factores: uma regulação bancária que isenta as dívidas soberanas da alocação de capital, ao considerá-las “activos sem risco”; uma oferta de liquidez a taxas muito favoráveis por parte do BCE – negativas para algumas operações (-1%). Liquidez que os bancos canalizam sobretudo para aquisições de dívida pública, alimentando deste modo operações de “carry trade”. Operações que correspondem a arbitragens entre taxas de juro e que embora baixas têm assegurado alguns ganhos à generalidade dos bancos. Como resultado, em Fevereiro, a exposição dos bancos do euro à dívida pública ultrapassava já os 2 mil biliões de euros. Evolução que, ironicamente, se tem vindo a verificar uma década depois dos esforços que, na crise financeira, procuraram “cortar” as ligações entre o risco soberano e o risco bancário – risco traduzido na dívida pública acumulada nos balanços dos bancos. Esforços que conduziram às políticas de austeridade e à implantação de uma União Bancária que permanece incompleta até aos dias de hoje. Os Estados surgem neste contexto como os maiores beneficiários da acção do BCE, com prejuízo do financiamento do tecido produtivo.

Como resultado, o elevado nível actual de endividamento público das economias da Zona Euro levanta dois tipos de questões a que a Europa do euro vai ter de responder: a primeira refere-se à credibilidade do nível máximo de endividamento previsto nos Programas de Estabilidade e Crescimento – 60% do PIB – quando avaliado à luz do crescimento recorde das dívidas públicas, desde o início da pandemia; a segunda refere-se ao crescente desajustamento entre a acção do BCE e a sua missão estatutária, tal como esta decorre dos próprios tratados.

Como vai a Europa do euro responder às crescentes pressões que está a ter de absorver, devido aos bloqueamentos estruturais e aos desequilíbrios internos, bem como às mudanças que se estão a verificar no contexto económico e financeiro mundial? Vai ajustar o mandato do BCE, de modo a permitir uma adequada articulação entre as políticas monetária e fiscal, tendo por objectivo o apoio ao crescimento económico e à criação de emprego? Abandonando deste modo o âmbito estrito do seu actual mandato que – na linha das doutrinas ordoliberais adoptadas na Alemanha e reflectidas no mandato do Bundesbank – colocou o controlo de preços no centro da sua missão estatutária? Questões a abordar em próximos artigos.

 

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