Opinião
Os dilemas pós-covid da Europa do euro – (III)
Mesmo a decisão do BCE de “lançar mão” das medidas não convencionais de política monetária que estabilizaram os mercados do euro foi então tomada em nome da necessidade de combater os riscos de deflacção que ameaçavam a Zona Euro e não de preocupações com a preservação do emprego.
1.Compreende-se que num tempo de pandemia a UE dedique uma cimeira à coesão social, mas a verdade é que esta passou ao lado de questões que vão determinar o seu futuro. Pela sua importância e implicações, deixo algumas observações sobre duas que considero críticas: a missão estatutária do BCE e a intervenção dos Estados na economia.
Em relação à primeira, está em causa saber se a Europa do euro vai favorecer uma articulação entre as políticas monetária e fiscal, com um duplo objectivo: aumentar o crescimento potencial e a criação de emprego; garantir a sustentabilidade orçamental a longo prazo das economias do euro, em particular das mais endividadas.
Em relação à segunda questão – papel do Estado na economia – trata-se essencialmente de definir a sua actuação ao longo de três eixos distintos: políticas públicas – alcance, instrumentos e financiamento; regulação da actividade económica – em particular enquadramento institucional e regulamentar dos mercados; por último, presença directa ou indirecta em sectores estratégicos ou de importância central em relação aos bloqueamentos que travam a produtividade e o crescimento.
O choque pandémico veio forçar uma reavaliação das doutrinas que levaram ao recuo da presença dos Estados nas economias. Concepções que atribuem aos mercados um papel predominante – entendimento neoliberal da “mão invisível” de Adam Smith – na correcção de desequilíbrios e que a crise financeira já havia enfraquecido.
Para além dos programas de apoio lançados pelos governos, o interesse em adoptar políticas industriais capazes de responder à crescente dependência e vulnerabilidade das economias mais desenvolvidas – sobretudo em relação à China – é um exemplo desta evolução.
Como resultado, o contexto em que o Tratado de Maastrich foi assinado e o euro lançado tem vindo a alterar-se de forma rápida e profunda. O que, por sua vez, deixa em aberto uma questão central, com implicações políticas de grande complexidade: quais os avanços no movimento de integração possíveis no quadro dos tratados actuais e quais os que pressupõem alterações dos “Textos Fundadores” da União Europeia?
2. A complexidade da situação actual está assim a alterar o quadro em que os bancos centrais têm de conduzir a sua acção, na medida em que, para além do comportamento dos preços, estes passaram a preocupar-se com o crescimento e o emprego, com o financiamento das economias e com a estabilidade dos mercados financeiros.
Deste modo, a missão estatutária do BCE, consagrada nos tratados e reflectida nos seus estatutos, não responde hoje aos problemas enfrentados pelo euro. Na verdade, embora os tratados actuais já admitam que o BCE se preocupe com as políticas globais conduzidas na Europa do euro – o artigo 3.º do Tratado refere que o BCE deve atender ao interesse em apoiar políticas dirigidas à prossecução do pleno emprego, à qualidade do ambiente, à coesão e à justiça social – estes objectivos são claramente secundarizados em relação à missão considerada central – a preservação da estabilidade de preços. Mesmo a decisão do BCE de “lançar mão” das medidas não convencionais de política monetária que estabilizaram os mercados do euro foi então tomada em nome da necessidade de combater os riscos de deflacção que ameaçavam a Zona Euro e não de preocupações com a preservação do emprego.
Entendimento acolhido em sucessivas deliberações do Tribunal Constitucional alemão, ao considerar que a actuação do BCE se tem vindo a realizar nas fronteiras do seu mandato estatutário. Posição que constitui uma ameaça permanente sobre a estabilidade dos mercados do euro e que aponta para a necessidade de: por um lado, clarificar o mandato estatutário do BCE, de modo a afastar dúvidas sobre a sustentabilidade da sua acção e permitir-lhe responder com eficácia aos riscos e aos desafios actuais. Será a este respeito importante avaliar as implicações e o alcance da revisão da estratégica de intervenção nos mercados que o BCE se propõe adoptar até ao fim do ano; por outro, reformular a plataforma institucional, jurídico/regulamentar e fiscal que enquadra o euro, de modo a “cortar” o círculo perverso que tem vindo a travar o movimento de convergência entre as economias do euro – com um impacto que a continuar iria, a prazo, intensificar as dúvidas sobre a sustentabilidade da permanência na Zona Euro das economias periféricas mais endividadas. Com o risco de poder vir a ser recriado o quadro que esteve na origem da crise das dívidas soberanas que quase fragmentou a Zona Euro (a continuar).
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico