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André Macedo - Jornalista 28 de Janeiro de 2018 às 22:06

Uma rusga num bar de alterne

Já foi há quase duas semanas, o dia em que o país ouviu a justiça discursar. Chamam-lhe: a abertura solene do ano judicial. Solene, realmente é. Obedece a uma ordem protocolar que deveria inspirar confiança. Fala este cargo, depois aqueloutro, não há surpresas, ninguém se amotina, apesar de naquela sala reinar a discórdia e a insídia.

Até Marinho e Pinto, o ex-bastonário dos advogados e ex-jornalista, soube respeitar a moldura rígida sem levantar sobrolhos. Diga-se que com toda a sua imprevisibilidade e inconstância — a sensação de que a corrida dele não era aquela, a Justiça, mas sim a política partidária, como se comprovou — foi dos que melhor se fez entender ao longo daqueles anos em que por lá andou.

Já para os outros, antes e depois dele, a regra é outra, falam oblíquo, falam de cernelha, falam e não falam, embrulham as palavras e disfarçam as ideias de tal maneira que não há ninguém que possa dizer: sim, eu compreendi tudo do princípio ao fim, posso discordar, mas entendi. O protocolo é preciso, é até muito necessário — despersonaliza em benefício das instituições que definem a perenidade — , mas protocolo não é sinónimo de afastamento das pessoas.

Abertura do ano judicial? Não, eu diria que todos os anos o que temos é a prova de fechamento escusado e excessivo num momento que deveria simbolizar o contrário: a justiça, base, coluna vertebral da democracia, aberta às pessoas a quem todos serve sem servir os interesses específicos e espúrios de ninguém especificamente. Nada muda, fica tudo na mesma. Aqui está um área em que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem muito caminho a fazer.

A rusga ao Ministério das Finanças como se fosse a visita-relâmpago a um bar de alterne... exigiria outras explicações e alguma transparência. O governo não está acima da justiça, não pode estar, não queremos que esteja, mas caramba: para o sistema não ruir debaixo de uma montanha de suspeitas, alguma abertura e frontalidade são necessárias. Já temos um ex-primeiro-ministro afundado num processo que revela um nível de traficância inaudito, há mais? O que se passa? Como gerir isto publicamente sem mandar abaixo o país inteiro na enxurrada?

A Itália, República dos juízes dos anos 80 e 90, não é um bom augúrio. Veja-se como ficou o país. Corrupção, de facto, não faltava. Obras públicas inflacionadas, concursos viciados, pequena e grande aldrabice, ex-líderes do governo julgados à revelia (Craxi) pelas maiores insalubridades. A certa altura, política e justiça confundiram-se e baralharam-se, as instituições vergaram debaixo do extraordinário peso da suspeição e do descrédito geral. A desconfiança passou a ser a única instituição... confiável, a única posição publicamente aceitável passou a ser a de não acreditar em ninguém, exceto nos que investigam e julgam.

O movimento 5 Estrelas é filho deste processo de desequilíbrio. A crise económica do país, já ossificada e sem solução aparente, é o terrível resultado que todos penaliza. E no entanto o protocolo judicial, tão parecido com o nosso, mantém-se igual, lambido e untado em longas frases barrocas que ninguém entende. A democracia já não morre às mãos de golpes de estado, como antes acontecia. Morre por dentro. Morre às mãos das instituições que lhe deveriam servir de base. 

P.S. Na semana passada escrevi que os CTT se tinham endividado para pagar dividendos. Enganei-me. Estão a consumir as reservas para remunerar os acionistas.

Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico

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