Opinião
Mudar de pele
Um bom jornal sabe que pode ser fuzilado e avança pela força das ideias que transporta. Morre e renasce por elas.
Há coisas do diabo. O meu último dia como jornalista, foi o primeiro do "Diário de Notícias", o novo semanário nacional. Uma nova pele para os dois, embora a substância não mude para ambos.
Fazer perguntas, dar respostas, contar histórias, procurar estabelecer uma ligação ao público, leitor, ouvinte e espectador. Conversar com ele, fazer a ponte que liga e corporiza a nossa comunidade, expor e revelar, mas também escolher os assuntos que nos ajudam a dizer (resumir, contrariar, detestar, duvidar) quem somos, o que desejamos para nós e para os outros, o que estamos ou não dispostos a arriscar por essa coisa maior do que a nossa vaidade pessoal e profissional. Começa ou pode começar na vaidade, até que a humana mediocridade cede a essa força infinitamente maior. Mais poderosa. Mais generosa. O nosso grau de compromisso.
Eu não gosto de escrever, mas de ter escrito, uma frase que li num sítio qualquer e que resume a dificuldade deste trabalho artesanal. Não é conteúdo - essa palavra é boa para definir o interior de um rolo de carne. Não sou e nunca fui chef de cozinha, fui editor, trabalhei sobre as ideias dos outros à procura de alguma coisa de único. Desconheço o que é conteúdo, repudio quem queira transformar a informação numa estúpida linha de montagem em linha reta. Num mundo redondo e cheio de curvas, de altos e de baixos, pleno de relevos e de espessura, a informação resulta da meticulosa carpintaria das palavras e das imagens que se juntam para contar uma ideia que se mantém de pé uns dias, semanas ou até anos.
O prazo de validade: li no Diário de Notícias... é uma afirmação intemporal que nos dá permanência e oferece oportunidade. Haverá melhor coisa do que ter a oportunidade? Um bom jornal tem lá dentro - deveria ter numa linha qualquer, rogo-vos para que tenha - essa promessa que nos impele a mexer e a reagir. Essa galhardia contra o banal e o injusto e o que está errado e que tem de mudar, seja em que escala for. Um jornal não é uma rede social. Um jornal é um animal social, liberta-nos da rede que nos prende, constrange, policia e impede de termos voz própria e singular. Não é um coro, não é uma turba de linchamento, não é um manual de regras, é também um ato de subversão.
Um bom jornal sabe que pode ser fuzilado e avança pela força das ideias que transporta. Morre e renasce por elas. Não por vaidade, já o disse, a vaidade entorpece - matem os vossos bebés é a melhor sugestão que se pode dar a quem escreve: se soa demasiado bonitinho e acrobático, apaguem, não somos trapezistas, escreveu o grande editor Terry McDonell. Não por vaidade, dizia eu, mas talvez por sabermos que há outra edição logo a seguir. E depois fica a maldita pergunta: será que fiz o que devia ou fui longe demais?
P.S. Um agradecimento especial ao André Veríssimo, diretor deste importante jornal - 'keep on rockin' - e ao Raul Vaz, que me convocou a escrever aqui, e também à Cofina, onde comecei e cresci. A última palavra, a mais importante, e o derradeiro agradecimento (sem ponto final) fica para os leitores. O leitor.
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
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