Opinião
Viver assim
Quando eu tinha a idade da “rapariga do telemóvel” não havia telemóveis. Frequentava o que então se chamava de “liceu”. Diziam que eram precisas referências e no discurso oficial elas eram Deus, a Pátria e a Família. Eu ligava pouco a isso num registo teó
Nessa altura, uma fatia dos meus colegas lembrou-se de chamar ao “liceu” Amílcar Cabral. Outra fatia respondeu chamando ao “liceu” António de Spínola. Houve uns estalos e umas vaias quando alguns de nós participaram num concurso televisivo entre “liceus” que se chamava “Taco a Taco”. Os iluminados, de esquerda, diziam que o concurso visava legitimar o regime. Os não tocados por essa luz, de direita e de coisa nenhuma, só se queriam divertir vencendo os “liceus” rivais. Era um mundo pequeno, um porto de abrigo. Sem grandes rasgos mas também sem grandes riscos. Fiquei para ver o desaparecimento de duas palavras que nunca mais foram usadas. Essas palavras não foram banidas por serem de direita, porque os de esquerda também as praticavam. Essas palavras morreram porque se esvaíram e não passa pela cabeça de ninguém das “escolas secundárias” que pudessem ter existido. Essas palavras eram duas e diziam-se “temor reverencial”. Que era o que, por exemplo, os alunos tinham perante os professores. Não era pânico, nem sequer medo em estado puro. Era respeito. Seguido de reverência. É verdade que os professores contribuíam porque se davam ao respeito. Mas tudo isso são coisas do passado e retórica bafienta.
Hoje, no admirável léxico novo das “escolas secundárias”, mais as “C+S” e outras siglas incompreensíveis, onde aos professores cabe “motivar” os alunos, onde se preenche fichas novas com técnicas novas, onde se deve “aprender a aprender”, “aprender a ser”, “ser e aprender” e outras notáveis conjecturas, há um pobre de um professor, manifestamente fora de água, que revela esta coisa gloriosa: “nas minhas aulas os alunos recebem e enviam mensagens pelo telemóvel, ouvem música nos leitores de MP3, vão à casa de banho, à secretaria e onde querem aos quartos de hora, conversam uns com os outros, enfim, fazem o que querem. Qual é o meu papel? Apenas um, mantê-los mais ou menos sossegados durante hora e meia”. A “ditadura do aluno”, de há muito instalada, traduz-se na ideia fixa de que as regras são feitas, na prática, pelos alunos e, em todo o caso, são feitas em proveito dos alunos e não tanto em vista da sua aprendizagem. As regras são feitas com o objectivo estatístico da passagem, cumprida a rota do facilitismo instalado. Os próprios professores são muitas vezes coniventes porque acham que não são pagos para se maçarem e o melhor é deixar correr. É nesta admirável bolha que se conhece, da boca do PGR, que “se soubessem a quantidade de faxes que eu recebo de professores a relatarem agressões” e se precisa, na letra dos jornais, que no último ano lectivo foram agredidos 185 professores. Face ao que o secretário de Estado da Educação vem insurgir-se contra “a imagem de que as escolas são o caos”. Pois, são lá agora! Caos seria se “a velha”, tivesse morrido. E se a outras “velhas” e “velhos” lhes acontecesse o mesmo. Aí sim, seria preocupante. Ora não estamos aí. Caos seria, também e bem pior, se os telemóveis não funcionassem direito. Ou se o MP3 avariasse. Se não se pudesse marcar encontros com as namoradas “para fazerem sexo nas casas de banho”. Aí sim, seria preocupante. Ora não estamos assim. Os telemóveis funcionam, o MP3 também e os encontros florescem tranquilos.
Dizem ser fácil comparar a situação do ensino público e do privado. Pois é. Fácil, mas justo. Porque se a “rapariga do telemóvel” andasse numa escola privada e tivesse feito o que fez tinha o caminho traçado no minuto seguinte. E desde a rua, pelo lado de fora, podia perguntar-se, se alguma réstia de angústia lhe restasse naqueles neurónios, se é bom viver assim. Viver assim é viver na bolha das novas tecnologias. As que substituem a família e os amigos. As que fazem das manhãs e tardes uma televisão e das noites uma Internet. As que fazem viver virtualmente. As que fazem viver para o YouTube. Se Portugal vivesse a vida real, o caso da “rapariga do telemóvel” só podia ter um desfecho, para lá do óbvio para a própria: a demissão imediata de toda a equipa governativa da educação.