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Opinião
14 de Abril de 2008 às 13:59

Os perentórios e os outros

Parece que ocorreu no Parlamento uma sessão sobre o acordo ortográfico. Uma espécie de sessão de esclarecimento aos deputados. A propósito da “atribulada história dos múltiplos acertos e desacertos da ortografia”, nas palavras de uma deputada, enxertou-se

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Para tanto estiveram presentes Vasco Graça Moura e Carlos Reis, na qualidade de especialistas na matéria. E os deputados. No final era e é possível fazer as sínteses.

A primeira é a de que estiveram frente a frente os peremptórios e os outros (como ainda se escreve) ou os perentórios e os outros (como se escreverá). Os outros são, nos dois casos, os deputados. Peremptoriamente, Graça Moura dissertou sobre “a incerteza grafémica” que o acordo trará no seu entender. Peremptoriamente, também, Carlos Reis opinou sobre os legisladores do liberalismo e o não desrespeito que tiveram pelo “idioma de Alexandre Herculano”. Perante o que se imagina o tédio das senhoras e dos senhores deputados, mais virados, normalmente, para coisas mais terrenas e, sobretudo, mais imediatamente visíveis. Ainda assim, do lado dos deputados, “noblesse oblige”, foi dito que existe “manifesta abertura de espírito para valorizar todos os argumentos aqui ouvidos” – o que é uma pérola política que quer dizer rigorosamente nada, salientando-se a referência ao “espírito” da coisa, no caso da abertura manifestada. E também foi dito, do mesmo lado, que “ficámos a conhecer todos os pontos de vista, nalguns casos, felizmente, antagónicos” – o que é outra pérola demonstrativa de como se pode falar muito e dizer nada, percebendo-se mal, entretanto, a felicidade que os antagonismos carreiam para a coisa. Para quem está habituado a discutir política económica, infra-estruturas e projectos, banca e privatizações, securitizações e afins, é seguramente entediante (ouvir) discutir ortografia. Talvez por isso não consta dos relatos que tenha havido qualquer ponta de entusiasmo, a favor ou contra o acordo, pelo lado dos deputados que cogitarão, agora, na melhor maneira de não terem de aturar tão cedo semelhante prova de esforço. Foram “ouvidores”, “ouvidores” se sentiram e, para muito tempo, já têm a sua dose. Ficaram, todavia, a saber – se estiveram atentos nessa parte – que mais do que discussões entre “puristas” e os que o não são, o que verdadeiramente está a despoletar os anseios e os estados de alma e ânsias a eles equiparados chama-se mercado editorial. É esta a verdadeira alavanca para as discussões e é bom que o saibamos para as podermos valorizar.

A segunda síntese, vistos todos os argumentos de um lado e do outro, a favor e contra o acordo, configura uma espécie de tábua de prognose e antecipa o futuro. Nenhuma dúvida sobre a complexidade do assunto e nenhuma dúvida sobre as dificuldades que coloca. Até sobre as dificuldades de elencar todas as dificuldades que possam surgir. Mas se a ideia é pautar a escrita pela pronúncia e, bem vistas as coisas, até independentemente dessa ideia, como não reconhecer que o futuro da língua portuguesa passa pelo número dos seus falantes. As línguas só sobrevivem se forem faladas e faladas por muita gente. Se não o forem têm o destino das línguas mortas e se o forem por pouca gente viram residuais, assim uma espécie de gato maltês, com piano em fundo. Dez milhões de falantes de português de Portugal nada podem contra 180 milhões de falantes de português do Brasil. Se somarmos os falantes africanos, são 230 milhões. E ninguém duvida que unificar a língua é, sobretudo na era da globalização, aumentar o seu valor de mercado. Estamos a falar do futuro. Do futuro mais ou menos próximo e do futuro longínquo. Fazer opções implica sempre perda. Mas há momentos em que se devem hierarquizar as coisas e optar. Tenho para mim que a hierarquia determina que a salvação e a vivificação da língua portuguesa no futuro é preço considerado justo pagar. Até porque, nesse futuro de que falo, não há a certeza de haver ainda editoras. Ou de existirem tal qual existem hoje.

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