Opinião
Quatro questões à volta de um pecado
O arcebispo Gianfranco Girotti, do Vaticano, anunciou por estes dias e o Osservatore Romano publicou uma listagem do que a Igreja Católica considera serem os novos pecados. Perante o que ocorreram as mais desencontradas, mas expectáveis, reacções. Que for
E, contudo, este anúncio desta consideração, merecia um pouco mais de reflexão. Sobre a razão de ser do anúncio agora feito. Sobre os critérios que presidiram ao elenco. Sobre todos e cada um dos novos pecados.
Falo de um, o da manipulação genética, para colocar, em torno dele, quatro questões que se alargam às ciências da vida em geral. Bem sei tratar-se de um domínio onde é frequente os cientistas perderem a cabeça com facilidade. Pelas boas razões, concentradas nos progressos científicos, só conhecem direcção única: ir em frente. Sendo que nem pelas boas razões se deve perder a cabeça. Daqui decorre a primeira questão. É ou não é possível estabelecer consensos, por mínimos que sejam, em torno das questões das ciências da vida em geral e da questão da manipulação genética em especial? Respondo que sim desde que o ponto de partida e o ponto de chegada das conversas e explorações seja o da dignidade humana. Se se aceitar isto, são possíveis consensos. Se não, não.
A segunda questão diz respeito à confidencialidade dos dados obtidos nestas matérias. O assunto tem uma vertente substantiva e uma vertente procedimental. Em síntese, a vertente substantiva respeita a que não se use o conhecimento da constituição genética de um indivíduo contra ele porque a confidencialidade das informações é um garante necessário para que se atribua efeito útil ao próprio conceito de identidade. É evidente, porém, que não basta dizê-lo ou mesmo escrevê-lo. É preciso não ceder às tentações, em nome da ciência, ou não praticar o “resistir a tudo, menos às tentações”. A vertente procedimental respeita à questão do suporte e consequentes regras para o arquivo, o tratamento, a reutilização e a destruição dos dados médicos, que, como imediatamente se alcança, não são, nestas áreas, questões de somenos.
A terceira questão prende-se com um outro lado dos “direitos do homem” que vem a ser o lado (obscuro) dos “deveres do homem”. Em situações limite, de doenças muito raras, nas quais o paciente ou a sua família podem deter a chave que permitirá combatê-la ou evitá-la, não estaremos perante “deveres do homem” que determinem que o “direito a não saber” deva ser comprimido e não deva prevalecer sobre a obtenção de dados e a sua divulgação ao cônjuge, actual ou futuro, em vista da sua (dele cônjuge) protecção e da protecção de futuros filhos? A quarta questão respeita à necessidade de se encontrar um justo equilíbrio entre o direito individual das pessoas de tomarem decisões autónomas e as necessidades de regulamentação da sociedade. Esse equilíbrio passa pela identificação dos riscos associados à investigação e pela definição dos critérios que se aplicam às situações de risco para as quais tem sentido uma regulamentação da sociedade.
Nestas matérias, de enorme complexidade, que tocam todos os dias um triângulo cujos vértices são a Ciência, a Ética e o Direito, é prudente não se ser definitivo. Por isso faz sentido a técnica legiferante das “sunshines rules”: regras programadas para certo tempo, vigorando nesse lapso de tempo, findo o qual seriam substituídas ou renovadas, cessando ou renovando a sua vigência, consoante a sua não aceitação ou a sua aceitação por parte do tecido social. Do mesmo modo é preciso encontrar (poucos mas bons) quadros de referência. Elenco três. Primeiro: há direitos que não podem ser vistos como livremente negociáveis, por marcada indisponibilidade, o que os subtrai às regras do mercado. Segundo: deve garantir-se o controlo de todas as informações que “me” digam respeito, o que leva a um tratamento oposto consoante seja o próprio indivíduo a querer saber ou terceiros. Terceiro: o fio de rumo âncora no “direito à identidade” que é o “sistema central de significações da pessoa individual”.
Aqui está. Basta o que fica para se perceber que quem ironiza sobre estes assuntos anda cá por acidente que, evidentemente, não merecia que tivesse ocorrido.