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Mário Melo Rocha 07 de Abril de 2008 às 13:59

Aguarela

Nos últimos anos, pelo menos nos últimos 10, o discurso que os partidos fizeram baseou-se numa petição de princípio. Que, evidentemente, estragou todo o silogismo. Supôs que as pessoas estavam na mesma, que as realidades não se tinham alterado e que os há

A verdade é que nem o tempo pára nem os hábitos estagnam. Por isso é que os partidos parecem tão desfasados da realidade, apenas a procurando na proximidade dos actos eleitorais. A realidade é meramente instrumental para eles.

O estudo que o INE fez publicar, há poucos dias divulgado, é uma aguarela impressionante da realidade económica e social dos portugueses. Registo três fundamentais dados. Primeiro: num país com pouco mais de 10 milhões de almas, dois milhões vive no limiar da pobreza. São 20%. Que ganham 380 € por mês. Trata-se de uma realidade incompatível com um país europeu, da Europa Ocidental, que aderiu há mais de 20 anos à União Europeia. Dir-se-á que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tem situado Portugal, sistematicamente, na casa do lugar 25º do “ranking” mundial. A conclusão parece óbvia: somos um país rico à escala do Mundo e um país pobre à escala do continente onde estamos plantados. E como, apesar da globalização, as nossas referências comparativas estão geograficamente situadas por perto, é deprimente o quadro e dá vontade de perseguir a retórica estafada: foi para isto “que fizeram o 25 de Abril”? A pergunta tem tanto mais razão de ser quanto os números não enganam. O estado de pobreza já era péssimo em 2004 e é agora dramático porque aumentou. Bem pode a retórica socialista vir dizer o que lhe apetecer. Os números não mentem e contam uma verdade desgraçada. Segundo dado: a dita “classe média” portuguesa (que, face à congénere europeia, é média-baixa, média-muito-baixa) parece ter tido, há mais de 10 anos, uma visão muito própria do que seria o paraíso. Consistia em adquirir casa própria. Em ser-se proprietário da casa de morada de família. É uma ideia curiosa, uma certa ideia de conforto patrimonial, de segurança para o futuro mas que, sobre ser pequenina, tem tido o ónus de pesar brutalmente nos bolsos dessa dita “classe média”. Os números não mentem outra vez: nos últimos quinze anos o peso das despesas com a habitação mais do que duplicou. O efeito é o da guilhotina mensal por perto, 12 meses ao ano, presumivelmente a multiplicar por 25 ou 30 anos. Nada sobra ou pouco sobra ao fim do mês para uma enorme fatia da população que faz os sacrifícios que faz para salvar a sua “alegre casinha”. Terceiro dado: apesar do que fica dito, com evidente excepção para os pobres que não têm onde cair mortos, uma crescente fatia de portugueses – sobretudo da nova geração – fez disparar o consumo dos restaurantes e afins. Comer fora de casa disparou numa percentagem de 46%, desde 2000. Vale 11% das despesas totais. O dado é relevante, sobretudo no registo de hábitos “europeizantes” e no registo sociológico de novas gerações urbanas que não vêm a mulher na cozinha nem aturam maçadas que transformam em “sacrifícios”.  Mais dois dados simbólicos: nos últimos 10 anos diminuiu o número de máquinas de costura e aumentou exponencialmente o número de telemóveis. Sinal dos tempos e de um país fragilíssimo. Até os muitos pobres falam ao telemóvel. Nada que não se soubesse já. Nas favelas brasileiras.

O relatório do INE é revelador de um país cada vez mais desigual. Com vários fossos entre as classes, com uma classe média cada vez mais asfixiada e atrofiada e com uma classe privilegiada pequeníssima, essa sim próxima da congénere europeia.  Mas os partidos não falam disto. Nem querem ouvir falar. Entretidos com os seus pequenos jogos de poder, cada vez mais constituídos pelos leitores da cartilha, por ela treinados e que a ela reportam. Afundando a pouca credibilidade que têm, funcionando em circuito fechado e protegendo os seus funcionários. Estão cada vez mais parecidos com as avestruzes. Em mais feio.

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