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17 de Dezembro de 2003 às 10:16

Sobre o poder e alguns poderes

O desafio da diferença, expresso na novidade dos nomes, das ideias e dos métodos, incomoda a vocação de perenidade inerente ao exercício do poder. Por isso, qualquer manifestação que tenha esse alcance desencadeia uma reacção violenta, apelando ao mais ra

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A entrevista concedida pelo eng.º Jorge Rocha de Matos ao programa “Negócios da Semana”, da SIC Notícias, acabou por ser um testemunho lapidar do que é uma certa consciência do poder. Tal ficou claro no registo, na atitude, no discurso. Mas, sobretudo, na obstinação.

Confrontado com a ameaça dos contestatários (sic.), Rocha de Matos reconheceu-a como tal e não permitiu quaisquer ilusões de facilidade. Quem tem o poder, defende-o. Contra tudo e contra todos. Custe o que custar.

Sempre foi assim e sempre assim será. É a própria lógica do poder. Desse poder institucional que, por natureza, se auto-justifica. O desafio da diferença, expresso na novidade dos nomes, das ideias e dos métodos, incomoda a vocação de perenidade inerente ao exercício do poder. Por isso, qualquer manifestação que tenha esse alcance desencadeia uma reacção violenta, apelando ao mais radical instinto de sobrevivência.

O fenómeno é bem conhecido e está estudado. No universo partidário, assume mesmo uma dimensão paroxística. Aí, aliás, há uma obra que merece ser revisitada, pelo menos para reconforto daqueles que, submergidos pela indigência da realidade contemporânea, possam ter perdido a perspectiva das coisas. Trata-se do livro de Robert Michels, “Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna – investigação sobre as tendências oligárquicas da vida dos agrupamentos políticos” (Antígona 2001) que, embora com uma primeira edição em 1910 e uma segunda em 1924, revela, em muitas passagens, uma actualidade inquietante.

Com efeito, o que impressiona é a aparente inevitabilidade de transformar o poder em fim. Poder que, uma vez conquistado, é preservado, guardado, barricado. E que, fruto de uma lógica intrínseca, se esgota no contínuo reforço das suas garantias de imunidade.

Trata-se, evidentemente, de um poder servido por uma tentacular urdidura de circuitos e de interesses, em que todos se reconhecem como parte de um mesmo projecto. Este é, de resto, um aspecto essencial ao sucesso do modelo. Porque, na sociologia do poder, e caracteristicamente, há uma enorme estabilidade do círculo de pessoas que acedem ao estatuto dirigente no quadro das sociedades modernas e democráticas.

Na retórica do poder, estes dirigentes assumem a transitoriedade do seu papel. E justificam a sua disponibilidade como contributo, tendencialmente feito à custa de um assinalável prejuízo pessoal, para a causa pública. Move-os, dizem, um genuíno espírito de serviço. E a sua entrega à vida colectiva corresponde a um indeclinável sentido de missão.

Porém, e isso eles jamais dizem, materialmente, o poder envolve dominação. E esta perverte. A generosidade dos impulsos iniciais perde-se. A abnegação dá lugar ao pragmatismo e ao calculismo. O poder arrasta o carácter dos dirigentes e, a prazo, a degradação moral dos líderes é inevitável. A história e a política – que, como Garaudy sintetizou um dia, é a história a fazer-se – demonstram que há uma efectiva transmutação psíquica naqueles que exercem o poder. Deslumbrados com a influência que vivenciam, maravilhados com as glórias mundanas que uns e outros lhes dispensam, o poder nunca os sacia.

Em cada circunstância, o exercício do poder tende, pois, a auto-perpetuar-se. E para isso concorrem múltiplas causas objectivas – aliás, aprofundando um saber ancestral, exploradas, uma a uma, pelos diversos poderosos deste mundo.

A saber, designadamente, o natural sentimento de lealdade que liga as instituições aos seus dirigentes, o poder financeiro das chefias como alicerce da fidelidade das bases, o recurso à comunicação social e a mediatização do poder, a corporização dos dirigentes como meio de controlo de lutas internas com a consequente neutralização daqueles que aspirem a desafiar-lhes o poder. Como pano-de-fundo, e citando Michels, um axioma fundamental: o povo nunca se esquece da regra sagrada que dá aos que estão o direito de continuarem a estar!

O poder instalado não tolera, portanto, quaisquer investidas que perturbem o “status quo”. E resiste-lhes, com determinação. Limita a liberdade de expressão, no âmbito da instituição e, sempre que a sua influência o permita, também fora dela. Paralelamente, aposta todo o seu prestígio e autoridade na desacreditação dos que ameaçam a ordem – estes, sublinham, não passam de irresponsáveis, incompetentes, inconsequentes, demagogos...

Mas, se a rebelião persiste, o poder tem ainda outros meios. Mais incisivos e, sobretudo, muito mais eficazes. Se não capitularam, há que enquadrá-los. Desde o princípio dos tempos que os insubmissos se pacificam através de uma avisada distribuição de privilégios. Porque, perante a ameaça, a subsistência do poder pode envolver partilha. Sempre com critério e, portanto, sem subversão de hierarquias ou de estatutos. Mas partilha, apesar de tudo. Num processo de domesticação e de esvaziamento de que a história fornece múltiplos exemplos. Hoje, entre nós, um primeiro e decisivo aspecto prende-se, justamente, com esta óbvia tentação. O que se promete de novo é, na essência, incompatível com uma negociação de vaidades e o que dela possa decorrer. A ser esse o caminho, é melhor que nada mude. Sempre se poupa a desilusão.

Mas, se houver desígnio e alma, é fundamental que se insista na refundação de exigências e compromissos. Nesse caso, para que possa encerrar uma proposta credível, efectiva e mobilizadora, o apelo reformista depende, vitalmente, de quem puder fazê-lo. O que exclui, à partida, e liminarmente, como Rocha de Matos bem intuiu, todos aqueles cujas responsabilidades se cruzam com as opções e as vicissitudes destes nossos últimos longos anos de história colectiva.

La Bruyère disse, um dia, sobre os grandes da corte de Luís XIV, que “se os homens de influência tivessem ainda por cima a ideia de se tornar boas pessoas, então a admiração e o desejo de emulação das massas transformar-se-iam em completa idolatria”.

Trezentos anos depois, talvez seja tempo de recuperar uma ideia de poder assente em premissas éticas. Desde logo, no que tem que ver com a promoção de uma outra atitude face à disputa e à sucessão de lideranças.

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