Opinião
O Apito e o futuro
A dimensão do que se antecipa permite ter esperança. Porém, permite também todos os receios. Os efeitos anunciam-se avassaladores e, assim sendo, as evoluções tornam-se imprevisíveis.
No meio da confusão, há um país atento.Um país dito real, que espera para ver.
Arrancado a uma dormência profunda, não tem pressa. Acreditando que, enfim, algo pode mesmo mudar. Afinal - o país percebe-o, é do regime que se trata.
Trinta anos depois, o que interessa não é a dimensão da podridão revelada, porque essa há muito se sabe presente, profunda, tentacular. Hoje, o que importa é esta novíssima possibilidade de consequência na denúncia e na investigação.
Porém, apesar do sentido inequivocamente positivo de alguns sinais, há ainda uma enorme incerteza no horizonte. E sobram motivos sérios de inquietação. Aliás, curiosamente, a ambivalência das implicações é óbvia.
Por um lado, dir-se-ia que a experiência dos últimos dias convoca uma ideia especialmente reconfortante, ao evidenciar que a prevalência do controlo institucional sobre os poderes de facto sempre radica na obstinação e no rigor daqueles a quem se confia a descoberta da verdade.
Mas, por outro lado, não é possível iludir a noção de que essa mesma experiência acaba por permitir todas as dúvidas acerca do que pudesse ter sido a interferência das hierarquias na consumação da iniciativa penal.
Ora, perpassando, ao nível das cúpulas formais, um registo de surpresa geral - aparentemente, nem Adelino Salvado, nem Souto Moura, nem o Governo saberiam o que se preparava, não pode haver qualquer tranquilidade.
Aliás, as reservas são mesmo irremediáveis. Porque, no fundo, ficará, para sempre, por demonstrar o que teria acontecido se as chefias pudessem ter controlado o tempo e o modo das acções em causa.
Ter-se-ia incomodado quem se incomodou? Ter-se-ia vasculhado o que se vasculhou? Ter-se-ia desafiado quem se desafiou? Para já, tudo questões sem resposta. Incógnitas para um futuro que passa por aqui.
Afrontar o mundo do futebol, os meandros do financiamento partidário, os favores da contratação pública, os vícios dos compadrios e promiscuidades locais, os negócios da classificação administrativa dos solos, os circuitos do tráfico de influências é, entre nós, algo temerário.
Desmesurado até, considerando os riscos que encerra. Goste-se ou não da ideia, trinta anos depois, a base da nossa democracia assenta neste imenso pântano. Atravessando os diferentes universos, alguns eméritos personagens ganharam o estatuto de intocáveis e, como ninguém, vivenciam o êxtase da impunidade.
Tipicamente, são gente feita a pulso, endinheirada à pressa, sem dar explicações. Alguns gostam das luzes, outros são homens de sombra. Mas todos defendem uma certa ordem - que não convém desafiar, devassar ou perturbar.
Entretecidos na sociedade de uma ponta à outra, o momento é deles. Professam uma lógica pragmática de poder e controlam o jogo - dos actores aos procedimentos e decisões. Nesse quadro, os partidos políticos são, cada vez mais, o seu ambiente natural.
De início, ficavam de fora. Mas, com o tempo, posicionam-se também dentro. A eles se deve a vertigem populista que emerge. A eles se devem as grandes campanhas de angariação de fundos. A eles se devem verdadeiros sindicatos de voto, nas secções, nas concelhias, nas distritais ou nos próprios congressos.
Sem ninguém dar por ela, estes novos próceres tornam-se imprescindíveis às sucessivas lideranças nacionais. E, paulatinamente, à medida que urdem as suas redes de influência pessoal, deixam-nas reféns.
Numa escala sem precedentes, alguns destes senhores começam a ser incomodados pela investigação penal. Percebe-se que é apenas o começo. Mas a verdade é que ninguém sabe onde e como vai acabar. No estado em que isto está, pode bem ser um dominó.
A caírem alguns, dificilmente cairão sozinhos e, por força dos que arrastem, outros cairão ainda. A dimensão do que se antecipa permite ter esperança. Porém, permite também todos os receios. Os efeitos anunciam-se avassaladores e, assim sendo, as evoluções tornam-se imprevisíveis.
A ver vamos. Se as hierarquias formais apoiarem a acção da investigação, talvez se vislumbre uma hipótese real de regeneração do sistema. Radical, como inevitavelmente terá que ser. Mas se o poder político intervier, em socorro destes baluartes da democracia, o futuro ficará escrito.
É um projecto colectivo que claudica, em nome das finanças partidárias e de mais umas quantas fortunas pessoais inexplicadas. Em qualquer caso, o apito soou e o país está atento.