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07 de Abril de 2004 às 13:19

Voto em branco?!

O autor perde, à luz da sua obra, a vivência de uma liberdade original e incondicionada. Ele é por força da obra que gerou. É esta que lhe confere o seu estatuto. ...

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Saramago ganhou o Nobel da literatura. E foi mesmo o único português a consegui-lo. Esse dado histórico, objectivo e factual, confere-lhe um estatuto ímpar nas nossas letras. Saramago é Saramago.

Uma referência obrigatória e incontornável. Mas Saramago é sempre o autor, o criador, o escritor. A sua dimensão é determinada por algo maior: a obra que o transcende.

Saramago é, enquanto tal, aquilo que a sua obra for. Saramago, o homem, não convoca, nem interessa. Desaparece perante o que representa. Como sucede com a generalidade dos grandes.

A sociedade costuma ter do fenómeno uma intuição natural. E é raríssimo confundir-se. Os autores relevam como tal. Mas só como tal, o que é, em princípio, muito saudável.

Para além ou antes do que são enquanto autores, o registo da sua passagem tende a ser absolutamente irrelevante. Ora, deste dado decorre algo essencial, para a cultura e para a sociedade. Porque, com grande tranquilidade se descobre que a genialidade pode bem conviver com fraquezas humaníssimas.

O que impõe, em nome da não contaminação, uma demarcação estrita entre a condição de autor e a condição pessoal do homem ou da mulher em que aquele encarna. Demarcação, historicamente, muitas e muitas vezes ensaiada.

É claro que tudo depende, em primeira linha, da atitude do próprio autor. E do seu grau de consciência das coisas. Porque o autor de uma obra maior tem que reconhecer que esta o ultrapassa e supera. Também que, nessa medida, o obriga.

O autor perde, à luz da sua obra, a vivência de uma liberdade original e incondicionada. Ele é por força da obra que gerou. É esta que lhe confere o seu estatuto. Mas, por isso, é tambémela que, inexoravelmente, o limita. Portanto, na vida, das duas uma.

Ou o autor assume a sua condição de autor e intervém nessa qualidade. Ou não.

Na primeira hipótese, o autor é ainda isso mesmo, autor de uma obra que lhe dá um contexto.

Na segunda hipótese, o autor prescinde da sua dimensão de autor e passa a ser apenas homem ou mulher, um ou uma entre muitos outros, partilhando ou desafiando as certezas e os equívocos dos demais.

Vem isto a propósito de Saramago, claro está, e do seu novíssimo “Ensaio sobre a lucidez”. Ou melhor, virá isto a propósito da forma como autor e obra se prestam a uma inusitada operação de marketing - por acaso ou não, suportada numa crítica virulenta da degenerescência do regime e na proclamação das virtudes do voto em branco.

Porque a dúvida é inevitável: Saramago é, aqui, ainda o autor? Ou, pelo contrário, apenas o homem? Ora, a questão não é inócua sob nenhum ponto de vista. Saramago, o autor, merece - e,mais do que isso, exige - atenção e respeito.

Nesse sentido, a tratar-se do autor, até se aceitaria a radio-difusão em directo, os milhares na sala, e a apresentação feita por um ex- Presidente da República, um reitor universitário e, ainda, o mais conhecido dos analistas políticos - cultura em tempo de massas, para quem goste do estilo.

Mas e se este “Ensaio sobre a lucidez”, bem como o circo montado à volta do seu lançamento, forem, sobretudo, uma epifania de Saramago, o homem? Justificar-se-á tamanho entusiasmo? Objectivamente, há elementos que legitimam a inquietação.

Desde logo, a crítica da democracia, como quadro de vida. Porque não é indiferente, no caso, que Saramago, o homem, nunca tenha impressionado pela clarividência em matéria de regime. Na verdade, jamais escondeu a sua adesão ao modelo soviético, reconhecido pela negação da democracia e pela total ablação das liberdades.

Jamais abjurou o seu passado na direcção do “Diário de Notícias” e os excessos revolucionários do tempo. Jamais assumiu o despropósito das suas incursões em matéria de política internacional, a pretexto de um nunca recusado deslumbramento pelos palcos abertos pelo Nobel.

Jamais deixou de ser um arauto de proselitismos básicos e de visões anacrónicas do mundo. Depois, a apologia do voto em branco e o niilismo inconsequente que lhe subjaz.

Como se o voto em branco fosse, em si, uma proposta. Como se resolvesse, como se permitisse a construção de um caminho. Saramago, o homem, imprudentemente, avançou pelos terrenos do autor. E este, insensatamente, deixou-o à mercê dessa vertigem.

A concepção patológica da democracia evidenciada na obra é, afinal, expressão eloquente da desconfiança que, Saramago, o homem, sempre teve dos mecanismos de representação política.

A sua crítica envolve refutação - como é próprio, em certas hostes, de um militante disciplinado. É feita de fora, por alguém que não acredita e que não é parte no aprofundamento da experiência. A pretexto da literatura, mas traindo-a na essência.

Porque é Saramago, o homem, que, fiel ao testemunho de uma vida, deixa feito o seu testamento político. Um homem que, como tal, não comunga de nenhum estatuto diferenciador e que, por isso, releva tanto ou tão pouco como qualquer outro.

Desta deliberada e mal resolvida subversão de registos, resulta, aliás, uma única dúvida séria: Saramago, o homem, votará em branco? Ou votará, ainda e sempre, no Partido Comunista?

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