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Opinião
02 de Junho de 2004 às 14:00

Pecados europeus - o original e os outros

E, assim sendo, o espectáculo de alarvidade e baixeza dos últimos dias só potencia o inevitável. Com a vantagem de tornar eloquente a degradação a que chegámos. E de nos fazer mais e mais penosa a experiência da política.

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A que se deve esta lamentável tragicomédia pré-eleitoral? Como pode um povo que, ainda há pouco celebrava a sua recém-conquistada democracia, resignar-se à presente indigência?!

Esquecemo-nos, todos, do que está em causa? Ou será que o grau de desespero é já de molde a inibir a indignação?

Há muito que a nossa política é a expressão acabada da ausência de chama, de rasgo, de mobilização e de projecto. E há muito que, por isso, o país fica longíssimo.

Há muito também que ninguém parece deter-se, suficientemente, no fenómeno. E, portanto, há muito que se despreza a força corrosiva destes processos subtis, discretos e paulatinos de alienação.

Tal seria sempre grave, pelo que encerra de demissão e de entropia. Mas é muito mais sério quando se está perante uma cultura democrática tão marcadamente incipiente.

Aliás, o alcance de semelhante deriva é potenciado pela própria natureza intelectual da nossa adesão à democracia. Porque, em rigor, do ponto de vista emocional, a matriz é ainda e sempre autoritária. No fundo de nós, há um pai, um chefe, um protector, um responsável. No fundo de nós, respeitamos, obedecemos, seguimos, correspondemos. Mas, no fundo, no fundo, jamais decidimos.

Ora, importa pensar no que queremos e no que somos. Também, e sobretudo, no que queremos ser.

Temos uma nova Europa, com vinte e cinco Estados-membros, e quase 500 milhões de habitantes. Desafios imensos à nossa frente. Económicos, com certeza. Mas, não menos importantes, sociais e culturais. Temos uma identidade, uma história e uma civilização que são, simultaneamente, lastro e apelo à reinvenção.

Nesse quadro, Portugal, como país, tem opções a fazer. Cabe-lhe ponderar oportunidades, fixar metas, orientar recursos. Na Europa, Portugal tem, afinal, que ser capaz de pensar o seu futuro - elegendo modelos de desenvolvimento, definindo estratégias, marcando o seu espaço, afirmando o seu contributo.

Não obstante, a agenda é outra. Dos grandes temas, nada se diz. Porque não há ideias, nem debate político.

A troca de palavras é rasteira. O nível da intervenção raia o indizível. Mas, significativamente, não há sombra de vergonha. Ou, sequer, de preocupação com o desgaste da imagem de instituições e protagonistas.

No núcleo das coisas, aliás, um óbvio pecado original. De que poucos parecem dar conta, mas que tudo condiciona.

Seria natural - naturalíssimo até - que o Partido Socialista quisesse transformar estas eleições europeias numa oportunidade para questionar a legitimidade do actual Governo. É assim, em regra, com quaisquer eleições intercalares, sejam quais forem as conjunturas e sejam quais forem os pretextos.

Bastante mais extraordinária é, contudo, a escolha do cabeça-de-lista: um ex-ministro das Finanças e, concretamente, aquele a quem a actual Situação dirige as mais veementes e assanhadas acusações. Opção temerária? Ou genialidade pura?

Com Sousa Franco, o Partido Socialista conseguiu deslocar o foco, definitivamente, para a política interna, prejudicando qualquer veleidade de aprofundar as urgências europeias. O que, reconheça-se, perante a ausência de agenda, é bem pensado. Mas, paralelamente, com Sousa Franco, o Partido Socialista desprotegeu o flanco, oferecendo à coligação no poder a oportunidade de recentrar atenções nos malefícios da governação socialista. E, aqui, dir-se-ia, o passo sempre seria incauto.

Porém, porque a política é sobretudo imponderável, a armadilha acaba por enredar a candidatura adversária. A imprudência socialista converte-se, afinal, por inépcia alheia, numa estratégia temível. Os candidatos da «Força Portugal» mordem o isco e, à Europa, preferem o ataque a Sousa Franco. Recuperam o défice e imputam-lhe culpas. O que, aos olhos de todos, não só torna indeclinável a defesa como convida a actualizar a sindicância das contas públicas. O confronto passa a ser entre Sousa Franco e Manuela Ferreira Leite. E, ao fim do dia, os maiores embaraços podem recair sobre a pobre ministra - imolada no altar de uma candidatura sem rumo.

Estrategicamente, os socialistas ganham pois em toda a linha. Por um lado, recusando a discussão da Europa, esvaziam o alcance do maior trunfo trazido pela candidatura adversária - o próprio João de Deus Pinheiro. Por outro lado, ao recentrar atenções na política interna, acabam por conseguir escrutinar o desempenho das finanças públicas, capitalizando o descontentamento inerente à recessão.

E, assim sendo, o espectáculo de alarvidade e baixeza dos últimos dias só potencia o inevitável. Com a vantagem de tornar eloquente a degradação a que chegámos. E de nos fazer mais e mais penosa a experiência da política.

Ana Manso é, agora - e muito merecidamente -, um ícone. Desta democracia que temos.

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