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Opinião
19 de Maio de 2004 às 14:00

Verdades da Televisão

Não há dúvida de que a televisão - designadamente, esta televisão privada dos «reality shows» e porcarias quejandas - cumpriu um papel importante na transformação social dos últimos anos.

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Que difícil é, quando tudo baixa, não baixar também! António Machado, «Obra Completa».

Alguém disse, um dia, que os povos têm os governos que merecem. Hoje, poderia dizer-se que os povos têm, também, as televisões que merecem.

Portugal tem a televisão que tem. O que é eloquente acerca do país que somos. Ou do país em que nos tornámos.

Perante a passividade de quase todos, os canais generalistas vivem uma emulação perversa, em que o melhor parece ser sempre aquele que é capaz do pior. Impressivamente, ao Big Brother respondeu-se com o Masterplan. E, a partir daí, o futuro ficou escrito.

Nas duas televisões privadas portuguesas - pouco mais de dez anos sobre a histórica abertura política que as permitiu -, o cenário é tenebroso. Mas, não obstante, ou talvez por isso mesmo, os portugueses preferem-nas.

E o segredo do sucesso é muito parecido. Na SIC, um pacote de três telenovelas brasileiras em ‘prime time’. Na TVI, duas telenovelas portuguesas, no mesmo horário. Na SIC, essa abjecção chamada ‘Sonho de Mulher’, em que umas meninas tontinhas, com liceus inacabados em Corroios ou Samora Correia, suspirando por famas holywoodescas, se expõem a humilhações tristes de ver. Na TVI, na mesma noite, disputando telespectadores intelectualmente indigentes, esse fresco do país profundo, aquele que preferiríamos desconhecer, chamado ‘Vidas Reais’. Na SIC, ao domingo, o sobrevivente e loiríssimo Herman José, sombra pálida do que foi, sucumbindo à ordinarice e à falta de gosto, para gáudio de uma plateia em que mães de família pequeno-burguesas partilham gargalhadas alarves com alguns jovens de subúrbio. Na TVI, convocando um público dado a emoções ainda mais fortes, um sub-produto deste moderno telelixo de massas, intitulado ‘Fear Factor’, alienante perda de tempo, em que o gozo parece estar na experiência da alteridade, já que afortunadamente são sempre outros os que se vêem forçados a mergulhar com cobras ou a comer testículos de bicho.

Pelo meio, noticiários de hora e meia, numa sucessão assumida de irrelevâncias feita a par de uma consciente exacerbação do escândalo, do patológico e do bizarro. Os alinhamentos, aliás, revelam bem o nível a que tudo desceu. A informação é pretexto, mas não é já mais nada.

A RTP, reconheça-se, melhorou. Fez um esforço. E afastou-se da vertigem de rangelização a que, num momento negro, quase pareceu sucumbir.

Mas o problema é que a diferença já não reverte o caminho. O povo está contente com o que tem. Embrutecido por uma televisão que puxa para baixo.

Homens, mulheres, crianças, de norte a sul do país, habituaram-se à degradação e, agora, reconhecem-se no que vêem. Acriticamente. A televisão ‘made in Portugal’ não forma, não educa, não informa, não esclarece, não ensina. No melhor de que é capaz, apenas ajuda a passar o tempo. Num país em que seria decisivo estimular a sensibilidade à cultura e fomentar a capacidade de opinião, a televisão não acrescenta. O que é, absolutamente, devastador.

O fenómeno tem, aliás, uma dificuldade própria. Saber destrinçar o que é, aqui, causa e efeito.

A televisão é o que é por assunção esclarecida e incondicionada de um certo modelo? Ou a televisão é o que é por força de uma determinada interpretação do que se crê ser a apetência do público?

Por decorrência, no fundo, é a televisão que faz o espectador? Ou é o espectador que faz a televisão?

Quando se trata de perscrutar o sentido profundo de um povo através da televisão que produz e consome, nada disto é despiciendo.

Porém, a complexidade é enorme. E o caso português bem pode ser exemplar. Não há dúvida de que a televisão - designadamente, esta televisão privada dos ‘reality shows’ e porcarias quejandas - cumpriu um papel importante na transformação social dos últimos anos. Este ambiente ‘light’, feito de moda, ‘glamour’,música, espectáculo e festa, teve, nas novas televisões, um veículo e uma referência. E a verdade é que algo mudou mesmo, da atitude de vida às manifestações concretas da orientação individual e comunitária - ninguém pára para questionar o sentido da evolução,mas todos convergem na certeza da mudança. Depois, com o tempo e a fidelização de padrões, o público telespectador passou a exigir mais. E a oferta moldou-se ao novo gosto. O que era mau evoluiu para muito pior. E, a cada novo dia, ameaça ainda superar-se.

Ora, a angústia torna-se inevitável: já ninguém pode assegurar que deva ser este o modelo, como já ninguém garante que o povo prefira assim. Aliás, a razão e a vontade deixaram de ter qualquer alcance útil. A realidade televisiva anda por si e auto-justifica-se.

Sobre a essência do país que somos fala, afinal, a resignação. Ou, talvez, antes dela, a própria inconsciência das coisas. Tão verdadeiras a propósito da televisão como de tantas outras premências.

Talvez por isso, nestes tempos de primária exaltação de Aljubarrota, ninguém se detenha no facto de RTP, SIC e TVI transmitirem, em directo, o casamento de D.Filipe de Borbón y Grécia, Príncipe das Astúrias.

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