Opinião
O choque da pandemia (I)
Os governos estão agora a ter de lançar programas maciços de apoio transversal à actividade económica, enquanto os bancos centrais estão a financiar directamente os Estados e nalguns casos estão mesmo a monetizar os deficits públicos.
1. Na crise financeira de 2007/8 as políticas de austeridade, em conjugação com a política monetária do BCE e com a União Bancária, permitiram estabilizar os mercados financeiros do euro. No entanto, permaneceram por resolver bloqueamentos estruturais críticos: elevados níveis de endividamento das economias deficitárias; evolução desfavorável da produtividade e do potencial de crescimento com a travagem do movimento de convergência entre as economias mais competitivas e as mais frágeis. Para além disso, a generalidade dos mercados bancários saiu da crise financeira enfraquecida por pesadas carteiras de crédito improdutivo com reflexos negativos sobre o financiamento da actividade económica.
Foi assim sobre uma Europa do euro ainda enfraquecida pelas sequelas da crise financeira que se fez sentir o choque da pandemia. Choque simétrico que devido à sua intensidade sem precedentes está a ter um duplo efeito: por um lado, está a acentuar os desequilíbrios entre os diferentes grupos de economias do euro – em particular, entre as economias credoras do Norte e as deficitárias e devedoras do Sul – só a prazo será possível avaliar o impacto efectivo do programa de ajudas; por outro, está a acelerar mudanças que já se vinham a verificar, tanto a nível do “capitalismo mundial” como do europeu.
2. Neste contexto de grande complexidade, colocam-se dois tipos de questões: como está a Europa do euro a responder aos estrangulamentos e aos riscos que hoje ameaçam o “grande projecto” de integração lançado há meio século pelo Tratado de Roma? Por outro lado, qual o caminho que deve ser seguido por uma economia que, como a nossa, se debate com bloqueamentos e desequilíbrios que estão a travar a sua modernização e o seu potencial de crescimento? Questões que me proponho abordar em próximos artigos.
Considero que a primeira questão deve ser avaliada tendo presente o caminho até aqui percorrido pela União Europeia. Caminho que – no que diz respeito ao movimento de integração económica e financeira – foi marcado pelo lançamento de alguns “grandes projectos” e por princípios que nortearam o seu rumo até aos dias de hoje. Estes, foram desde o Mercado Único até à implantação da União Bancária, passando pela adopção de uma Política da Concorrência muito rígida e pelo lançamento do euro.
Projectos e princípios concebidos e executados sob o impulso de uma dupla influência: por um lado, de correntes liberais de organização e de funcionamento dos sistemas económicos e dos mercados; por outro, do movimento de globalização económica, financeira e tecnológica que sofreu uma forte aceleração nas últimas décadas.
A pandemia veio acelerar mudanças neste quadro que a crise financeira já tinha abalado e enfraquecido. Para além da travagem da globalização, as concepções liberais que haviam levado a um recuo da intervenção do Estado na economia e a uma política monetária preocupada sobretudo com o controlo da massa monetária – na linha das Escolas Monetaristas, para quem a inflacção é um fenómeno essencialmente monetário – têm vindo a ser postas em causa de forma crescente: primeiro, pelos efeitos económicos, financeiros, sociais e políticos da crise financeira, depois pela pandemia.
Os governos estão agora a ter de lançar programas maciços de apoio transversal à actividade económica, enquanto os bancos centrais estão a financiar directamente os Estados e nalguns casos estão mesmo a monetizar os deficits públicos – caso da Reserva Federal, dos bancos do Japão e da Inglaterra e do próprio BCE através dos mercados secundários. O impacto potencial destas mudanças sobre o quadro institucional e jurídico/regulamentar em que a Europa do euro se tem movido é de grande complexidade, tanto numa perspectiva económico/financeira como política (a continuar).