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Opinião
07 de Junho de 2006 às 13:59

A russofobia

Estranha época a nossa. Perde a Europa energias para juntar a si um pais asiático, a Turquia, e ao mesmo tempo recusa o estatuto de Europa plena ao maior país europeu, a Rússia.

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Da parte que me toca não esqueço as dívidas que temos em relação a um país que nos deu Strawinski, Borodin, Glinka, ou Soloviev, Herzen, Turgueneev, Tolstoï, Tchekov, Dostoievski, mas também Lobatchevski, Kolmogorov, Pavlov e Mendeleev. A lista seria infindável. E a época troca isto tudo pela genialidade ignota (e temo bem que incognoscível) de um Turkgluglu ou quem seja a criatura.

Mistério só aparente, tem apesar de tudo algum modo de ser compreendido. Vejamos por isso qual a forma desta russofobia, quais as causas e quais os efeitos.

A forma é múltipla. Gastamos mais dinheiro e energia política a apoiar a Turquia que a Rússia. Não houve plano Marshall para a Europa de Leste, mas muito menos para a Rússia. Os lacrimejantes da guerra da Chechénia esquecem-se ou ignoram o apoio turco ao Azerbeijão, às repúblicas da Ásia Central (nomeadamente o financiamento em força de mesquitas e ensino religioso pela «laica» Turquia) e sobretudo que Rússia é um imenso império cuja estabilidade é em primeiro lugar do nosso interesse e que luta por esse império com os meios que tem, no meio de imensas dificuldades. Se um curdo, um cristão ou um homossexual é perseguido pela Turquia temos de ter em conta os «imensos progressos» que fez em nome da democracia, mas se uma política de estabilização ocorre na Rússia são persecutórios, cruéis, violadores dos direitos do homem. A compreensão não é gasta com a Rússia, e generosamente despejada sobre turcos. A hipótese de a Rússia ou de Ucrânia vir a fazer parte da União Europeia nem se coloca ou é residual, enquanto a inevitabilidade (instituída por quem?) da Turquia entrar é brandida por destituídos ou excedidos.

Quais as causas? Que provoca esta tara da época? A primeira causa é paradoxal. Se a Rússia é tão vilipendiada é porque é considerada um país efectivamente europeu. A dureza que os europeus mostram em relação à Rússia só se explica por esperarem bem mais dela, por a considerarem efectivamente europeia. Se perdoam a turcos é porque no fundo acham que deles não se pode exigir mais. Se criticam os russos é porque esperam mais deles. A Europa especializou-se na autocrítica, o que é saudável só até certo ponto, e só quando não roça o espírito suicidário e masoquista.

A segunda causa é histórica, mas conjuntural. Os países do leste e centro europeu acabaram de sair de um domínio russo que foi no mínimo cruel e opressivo. Mas esta causa não explica o sentimento da restante Europa.

Entra aqui uma terceira causa. É que da esquerda à direita (são tão parecidas...) muitos europeus configuram a Europa como o que saiu da NATO e da Guerra-Fria. Ora uma e outra foram necessidades, mas sinais de fracasso da Europa. A russofobia apoia-se em criaturas instaladas no fracasso, que não conseguem conceber a vida sem ser imersão em fracasso. A russofobia assenta num conservadorismo reaccionário, em pessoas que, da extrema-esquerda à extrema-direita, reagem fortemente a qualquer libertação de uma visão do mundo apenas com meio século. Instalados no fracasso, na estreiteza, na miopia histórica, querem um mundo que seja construído com base na sua estreiteza de vida, que os conforta.

A quarta causa, que se liga às anteriores, acomoda desde o capitalismo internacional e seus anónimos esbirros, sejam eles altermundialistas, ou propagandistas do liberal apressado, sejam eles nacionalistas rendidos a americanos (paradoxo só aparente, dado que os nacionalismos em muitos países europeus alimentam-se deste sentimento de subordinação), sejam eles marxistas redivivos com complexo de Édipo ferido em relação à União Soviética. É a submissão à propaganda americana ou pró-americana, que quer enfraquecer a potência russa.

A quinta é a tão invasiva mediocridade. O medíocre prefere ser comparado com uma vaga «grandeza» da cultura turca que não sabe sindicar (conhece as confrarias muçulmanas turcas? O sufismo? O sistema do millyet?) e sobretudo que não o sindica, que a grandeza de uma cultura que o é realmente e o pode por em causa. A «grande» matemática turca (contemplemos o vazio...) está ao acesso de todas as bolsas, mas duvido que haja muita gente a poder compreender Lobatchevski. O medíocre prefere ter um termo de comparação que não o ofusque.

Quais os efeitos desta russofobia? Para os compreendermos, temos de compreender qual a função russa na equação europeia. O folclore opõe a Inglaterra à França, mas já está por demais demonstrado que esta oposição tem mais de folclore que de realidade. Os dois pólos opostos da Europa são a Rússia e a Inglaterra. Uma e outra são os dois pólos que, para o bem e para o mal, constituem os dois contraditores da Europa. Na devida dose o seu papel tem sido positivo, em excesso, destrutivo. Quando vemos a mitologia britânica da Guerra-Fria vemos que a russofobia inglesa sempre foi mais forte que americana (o mito de James Bond só poderia ser inglês).

A Rússia tem assumido duas funções na civilização europeia. A de tampão e a de alternativa. De tampão em relação à Ásia. À Ásia turcófona e à Ásia de cultura extremo-oriental. Ainda hoje em dia é a Rússia que tem tido a tarefa de afastar da Europa ou pelo menos dela conter movimentos que secularmente tentam a invasão pela Ásia central do território europeu. Tártaros e turco-mongóis em geral foram e são contidos pelos russos. Fazem o trabalho sujo por nós. Um pouco como as almas sensíveis que sai incapazes de matar animais, mas adoram um bom bife, os europeus chocam-se com o sangue que isso provoca. A Inglaterra tem tido o papel inverso: o da entrada da Ásia na Europa. Não tanto em quantidade, mas em ideologia. Neutros em relação à cultura asiática desde que surja oportunidade de negócio, tradicionalmente são, não os mais tolerantes, mas os mais indiferentes à asiatização da Europa. Também por isso são os mais entusiastas na entrada turca na Europa.

Mas a Rússia tem tido o papel de alternativa. Assim como a Inglaterra é o travão empirista da especulação europeia, o travão liberal à estatização ideológica, a Rússia tem tido o papel de dar coloração religiosa a vivência civilizacional europeia, que tende a esquecer essa dimensão. Seja a invasão religiosa de Tolstoï, ou a religião comunista, tem sido a Rússia a equilibrar a Europa contra uma tendência infantilizante que nega o papel de todo o misticismo. Na versão liberal de um Turgueneev ou de um Herzen, na versão directamente religiosa de um Soloviev ou de um Tolstoï, ou na versão científica de um Mendeleev ou de um Lobatchevski (não é por acaso que a geometria não euclidiana se constrói em episódios diversos por um francês, Montucla, um alemão, Gauss, um húngaro, Bolyai e um russo, Lobatchevski) ou na versão política tanto do anarquismo, como da ditadura soviética.

Uma Europa sem a Rússia ou com a Rússia enfraquecida é uma Europa sem tampão, que vai deixando erodir lentamente as suas fronteiras e uma Europa auto-satisfeita infantilizando-se, desconhecendo a natureza fundamental da dimensão mística, religiosa e sentimental em toda a construção útil.

Em relação à Turquia argumenta-se com frequência que os temos de aproximar da Europa senão ela afasta-se de nós. Perguntome então: mas para ir para onde? Se está rodeada de vizinhos hostis por todos os lados e é dos povos mais isolados do mundo. Já a Rússia tem duas alternativas bem reais. Pode afastar-se na direcção da China e da Índia e da Pérsia, com as quais tem longas relações, ou do espaço turcófono da Ásia Central. Ou pode ainda fugir para dentro dela mesma. É que a Rússia é vinte vezes maior que a Turquia em dimensão e três vezes maior em população. E um sem número de vezes maior em riqueza intelectual, capacidade produtiva, recursos naturais. A Europa sem a Turquia é apenas ela mesma. Uma Europa sem a Rússia é uma amputada. Mas os russófobos, peritos de auto-contemplação, sabem bem o que é uma vida amputada.

A Europa está como um príncipe de farsa. Tem medo de se casar com a princesa porque tem personalidade própria e arrisca casar com a criada só porque esta é barulhenta e ameaça dar escândalo. A História demonstrará se estamos ao nível de senhores ou ficamos reduzidos ao papel de farsantes de opereta.

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