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Opinião
28 de Maio de 2007 às 13:59

A insuportável suspeita

Numa democracia consolidada é suposto existir um espaço de regras inviolável. Uma espécie de cerne intocável. Nessa terra protegida situam-se os direitos, liberdades e garantias. Aí se aconchega a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento.

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Para se perceber que a retórica deve andar bem longe destas coisas sérias, é ir ver as abundantes sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a matéria.

A senhora Directora Regional de Educação do Norte sabe-o. Ou já ouviu falar. Porque o sabe ou ouviu dizer ou apesar de o saber ou de ouvir dizer decidiu instaurar processo disciplinar a um professor. A partir daqui, a trilha bifurca. Há quem sustente e o professor com eles que se trata de um caso de perseguição política e há quem defenda que o processo movido se fundamenta num insulto protagonizado pelo dito professor e dirigido à pessoa do primeiro-ministro. Os primeiros falam da ocorrência de "um comentário jocoso a um colega, dentro de um gabinete, retirado do anedotário nacional do caso Sócrates / Independente". Os segundos asseveram, em resposta, que se tratou de um "insulto que não tem absolutamente nada a ver com anedotas ou a licenciatura do primeiro-ministro". O essencial é isto, tudo o resto é lateral. O Provedor de Justiça solicitou esclarecimentos à DREN e a oposição, em bloco, mostrou indignação que deve ser entendida para lá da retórica que é usual na vida parlamentar.

Independentemente do processo disciplinar, os tribunais pronunciar-se-ão, se for o caso. E independentemente do juízo em sede jurídica, há matéria para o tratamento político do ocorrido. Se a verdade dos factos apontar para a versão do professor suspenso, é absolutamente inqualificável a decisão. Que é persecutória, atentatória da liberdade de expressão, da liberdade de opinião e do livre pensamento. Mesmo que essa liberdade se faça sentir na sua versão mais leve e despida de preconceitos, que é a sua versão jocosa. A mesma versão, ainda que na forma tentada, foi usada recentemente por um ministro, numa sessão pública, e, que se saiba, nada lhe aconteceu. Politicamente, é irrelevante, aliás, saber onde ocorreu tal dito. O que é relevante, deste ponto de vista, é que mais um comentário jocoso sobre a licenciatura do PM – "se precisares de um doutoramento e mais seis anos de carreira, só tens de me mandar um fax" (segundo o "Público") ou "agora quem precisar de um doutoramento, manda um certificado por fax" (segundo o "DN") – desemboca directamente num processo disciplinar por queixa de um assessor da senhora directora. Nem Orwell se lembraria de tal coisa, depois de "1984" não ter ocorrido nessa data.

Se, diversamente, a verdade dos factos aponta, ainda que residualmente, para a versão da instaurante, ainda aí, a medida inspectiva e punitiva é desadequada e desproporcional. E perigosa para a própria entidade instauradora.

Primeiro, porque o Porto é das poucas cidades do país onde um insulto, do género do alegadamente proferido, pode ser dito com ar admirativo e exclamativo. Segundo, porque não se tem notícia de outros casos similares – e não devem chegar os dedos das mãos para os enumerar – que tenham conhecido tal desfecho. Terceiro, porque ficará sempre a insuportável suspeita de que o facto do professor ter sido deputado do PSD e ser casado com uma vereadora actual da Câmara do Porto, terão impedido uma reflexão mais aprofundada sobre a adequação, proporcionalidade e necessidade da medida tomada. Como é sabido, em política, o que parece é. E o que parece é muito mau. É claro que, em casos como este, o feitiço pode estar para a feiticeira como quando se virou contra ela. Consequências de um estado de espírito revelador do exercício de um binómio primário.

António Alçada Baptista, que, entre muitas outras coisas fascinantes, um dia se lembrou de escrever sobre "o riso de Deus", quis e soube dizer que, no fundo, tudo estava em saber "o que o outro desperta em nós". Umas vezes, altitude. Outras, não.

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