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11 de Maio de 2005 às 13:59

A esquerda doce

Sobretudo depois da queda do império soviético temos vindo a assistir à emergência de um novo espécime, geralmente recrutado da extrema-esquerda, quando tem passado, que largou o discurso inflamado e passou a assumir uma postura doce.

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Repare-se que não digo sorridente. Porque este espécime por vezes, aliás muitas vezes, faz ar zangado. Mas perdeu a inflamação, adocicou-se e mesmo quando se zanga fá-lo com a doçura paternal de um pároco de província.

É evidente para qualquer pessoa bem informada que se trata de pessoas com uma ideologia totalitária, profundamente antidemocráticas, que se adaptaram a uma democracia que dizem burguesa, não por amor, mas por desprezo. Nutridos do pensamento da impotência, a própria em instalar regimes totalitários, e a da democracia para gerar a sociedade que preferem.

Totalitários na alma, encostaram-se às garantias formais do Estado burguês e são hoje os seus principais defensores. Nunca se fala tanto em direitos, liberdades e garantias como nos seus discursos. Usam em boa verdade as garantias do liberalismo para o enfraquecer.

Para os cultores do equilíbrio apenas posso dizer que no futuro espero tratar do seu contrapeso folclórico, a direita decidida. Mas quedemo-nos hoje pela esquerda doce. Não me refiro a nenhum partido específico, dado que estão espalhados por vários e influenciam mesmo o discurso de partidos de direita, embora geralmente se concentrem em massa num partido, geralmente aliança heterogénea de movimentos. O que me interessa agora é ir para além desta imagem de totalitários de esquerda. Em boa verdade as suas fontes de pensamento são bem diversas, e se tivermos a paciência de pensar um pouco veremos que as suas fontes de pensamento são sobretudo três: a submissão aos americanos, o fascismo paternalista e o espírito colonial.

A submissão aos americanos?, pergunta o leitor espantado. Mas são contra a guerra no Iraque, são pacifistas, criticam o capitalismo americano! Sem dúvida. Mas no que criticam os americanos são inofensivos e os americanos sabem disso. Mas no que o apoiam são ofensivos e bem eficazes, e os americanos agradecem.

Como os americanos, querem impor uma Europa multicultural, enfraquecida. Como eles, recusam uma Europa militarmente forte. Como eles querem ver a Turquia na União Europeia e têm mais ainda que os americanos uma russofobia galopante. Que a Rússia seja chamada de fascista ao defender-se contra o terrorismo não lhes causa problemas, mas ai de quem lembrar de que o laico Estado turco financia os fundamentalismos islâmicos na Rússia, no Cáucaso, na Ásia Central e nos Balcãs. A sua imagem da Europa foi forjada pelos americanos. É a Europa NATO, que nada tem a ver com a cultura europeia, mas com o que resulta de uma Europa derrotada e dividida. Não foram entusiastas da entrada dos países de Leste na União Europeia, salvo depois de os americanos os terem apoiado e os terem integrado na NATO. Desprezam a cultura europeia clássica. Os seus centros de atenção não são Homero, nem os tragediógrafos gregos ou franceses, e se ouvem Bach preferem-no com frequência ao ritmo de jazz. Não são geralmente cultores de Thomas Mann, mas de Hemingway e Steinbeck. E fazem gala de serem admiradores da cultura americana, como se no caso deles fosse prova de tolerância, fazendo-nos esquecer que é essa a sua fonte principal. Contribuem assim para o ódio à cultura europeia para americano gáudio.

O fascismo paternalista? Isto ainda choca mais que a ideia da submissão aos americanos. Mas vejamos bem quais são os cavalos de batalha desta esquerda doce. É evidente que atacam também em duas frentes. De um lado, tendo aceite, a contragosto é certo, a democracia «burguesa», fazem o jogo das discussões técnicas. Discutem por isso o orçamento, as leis sobre a caça e assim por diante. Por outro lado, continuam a rezar a ladainha das injustiças sociais e das disparidades de rendimento. Mas fazem-no com a modorra que um pároco de aldeia reza a sua missa de segunda-feira ou com que um muezzin chama à oração num sábado. Sabem que exigem deles que se fale nessas coisas e fazem-no por dever de ofício. Mas o seu verdadeiro nicho de mercado, o que os entusiasma, e o que os distingue em relação às outras forças, nomeadamente as de esquerda, é a política moral. Herdeiros de Pétain e Salazar mais que de Mussolini ou Hitler, assentam o seu discurso em temas morais como as minorias étnicas, o aborto, as minorias sexuais. Mesmo que isso gere contradições teóricas e práticas que não se dão ao trabalho de resolver, como a defesa do Islão tradicional e das mulheres e homossexuais. Se bem virmos não têm em geral grande implantação junto dos proletariados internos, que se dirigem cada vez mais para a direita e mesmo a extrema-direita. Deus, Pátria e família são para eles o paradigma sobre a forma «Deus sempre o dos outros, Pátria desde que fora da Europa e família sim, mas alternativa».

E finalmente, o espírito colonial. No fim do século XVIII, Lord Cornwallis, em grande medida um dos fundadores do império britânico da Índia, na conformação que assumiu até à independência, organizou a legislação do país. Dirigiu-se aos pandit e aos ulemas (respectivamente eruditos hindus e muçulmanos) para registar o «verdadeiro» Direito indiano. O problema é que a historiografia contemporânea tem vindo a demonstrar que esta «verdadeira» Índia, esta Índia «tradicional», foi em grande medida uma construção europeia, que rigidificou relações sociais que estavam em mutação. Estes eruditos eram pouco ouvidos pelos potentados hindus e muçulmanos da época, as castas no século XVII mostravam maior abertura do que as teorias bramânicas diriam. O espírito colonial rigidificou a sociedade. O mesmo se passou com os estatutos dos indígenas em África, de que Portugal deu exemplos. Ora o que quer esta esquerda doce? Uma Europa multicultural, onde as «verdadeiras» tradições das minorias sejam preservadas. Em vez de convidar os laicos dos países muçulmanos, mais depressa encontramos fundamentalistas islâmicos nas suas conferências, na sua maioria, é certo, com um discurso reformado, doce.

Se bem virmos, não é de espantar que esta esquerda doce seja assim. Em grande medida explica-se pela origem social dos seus membros. Não proletários, mas pertencentes a uma pequena burguesia remediada, educada acreditando num mundo bipolar entre Estados Unidos e União Soviética, protegida por regimes paternalistas, que alimentavam sonhos coloniais. Uma pequena burguesia protegida contra a miséria mas desconfiada em relação às grandes ambições tem como filhos pessoas que se julgam imunes à primeira e abominam as segundas. É deste caldo de cultura que nasceu a esquerda doce. De gente habituada um pensamento remediado que na juventude grita a sua revolta através de um discurso inflamado, mas com a maturidade prefere o discurso doce.

Qualquer um pode ver que se trata de totalitários antidemocráticos que apenas apelam aos valores da democracia por razões estratégicas. Mesmo as burguesas endinheiradas que os acham amorosos e simpáticos podem fazer uma análise desta natureza. E é verdadeira e justa, mas pega-se demasiado à superfície.

A sua memória familiar tem como personagens de mais prestígio com que puderam conviver o pároco e o professor primário. Daí que a sua postura seja, mais que pedagógica, catequética. Tanto os seus sorrisos, como as suas zangas têm sempre o acento paternal, compungindo e bem-querente de um reitor. A sua obra de referência é «As pupilas do senhor reitor» numa versão com calças de ganga e música americana. As suas indignações são apenas manifestação da sua memória de baixa dignidade social.

Sempre que o leitor ouvir tais personagens, talvez se lembre destas ideias muito simples. Submissão aos americanos, fascismo paternal e espírito colonial. É isso que marca esta esquerda doce. Que a maioria queira uma democracia burguesa com todos os seus defeitos aceitam-no com desprezo. Que a maioria não queira a Turquia na Europa recusam e insultam por imoral. Como o professor primário corrige as ideias e o pároco as condutas estão eles aqui, prontos a corrigir umas e outras, sobretudo se forem as da maioria. E como toda a sociedade carece dos seus catequistas, vivemos com estes à falta de melhor. Uma esquerda doce. Para quem lhes acredita no gosto.

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