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[552.] Sanitana, ArmaLite: uma retrete e uma carabina

Quando Marcel Duchamp expôs em 1917, sob pseudónimo, um urinol deitado com o título "Fonte", causou sensação: questionou a definição e a adoração da Arte. Os organizadores da exposição rejeitaram a "Fonte" por não ser arte, mas a noção de que arte é o que um artista quiser tornou-se consensual no mundo artístico: em 2004, quinhentos artistas e historiadores consideraram-na a obra de arte mais influente do século XX.

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O acto fundador de Duchamp merece respeito ou, como diz em letras grandes um anúncio de Sanitana, marca de louças de cozinha e casa de banho: "Respeitinho".

 

O anúncio não menciona Duchamp e o seu urinol, mas a referência intertextual é inescapável. Por baixo do pedido de "respeitinho", o anúncio interpela o observador com a pergunta: "Quando olha para este objecto, o que vê?" Tendo em conta a beleza da foto e do design da retrete mostrada, a resposta implícita é a que Duchamp pretendia com o seu urinol: arte.

 

No texto do reclame, os publicitários desviam a conversa para a qualidade da concepção e fabrico da retrete, mas não deixam de colocar a mesma questão de Duchamp: o observador "vê só uma sanita, ou vê uma peça de cerâmica que foi pensada e testada"? Escondendo a referência a um debate que não lhe interessa desenvolver- se a retrete é arte ou não -, o anúncio diz ao observador que "é natural que veja só uma sanita" e pede-lhe que "não pense nisso". Pretende assim evitar que o observador se perturbe com a possibilidade de uma retrete ser arte, mas o convite está todo na imagem magnífica, em plano contrapicado, fazendo dela a contraparte visual da popular metáfora da retrete como um "trono",  e na sugestão escondida do carácter artístico da "peça de cerâmica".

 

Sem o exprimir abertamente, o anúncio sugere, tal como Duchamp, que um urinol é arte, se o observador assim o desejar. Com o centenário da "Fonte" à porta, faz-se a medo justiça à proposta de Duchamp, transformando-a numa noção comum e, neste caso, comercializada.

 

Utilização diferente duma obra de arte na publicidade é a do fabricante de armas norte-americano ArmaLite: para chocar e obter divulgação viral da marca, publicou em Itália um anúncio em que o David de Miguel Ângelo segura uma carabina gigante e apresenta-a com o título "AR-50A1: A work of art". A montagem fotográfica está péssima, pois foi preciso aumentar irrealisticamente a arma para ela assentar na posição dos braços da estátua, retirando-lhe a fisga da mão esquerda. E nota-se que poderia ser mais pequena se a tivessem subido um pouco na mão direita.

 

Mas, pudicos, os publicitários quiseram tapar os genitais de David, que ainda hoje chocam tanto como o urinol de Duchamp. Se não os tapassem, o homem que puseram por baixo da estátua observando-a pareceria olhar para os genitais e não para a arma: transferiam o poder sexual de David dos genitais (de toda a estátua) para a carabina. Pirilau por pirilau, os italianos preferem o David original: a marca não pagou direitos e desvirtuou a obra de arte, o que é ilegal em Itália. O sururu resultante era, porém, o que os publicitários desejavam. Mesmo que o anúncio seja proibido, ele já aí anda pelo éter digital, e aqui está também, neste artigo.

 

eduardocintratorres@gmail.com

 

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