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Produção, indústria e distribuição insistem na subida de custos no meio de "caça às bruxas"
Governo faltou à audição no parlamento dos membros da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agroalimentar (PARCA) sobre o estado de transparência, equilíbrio e equidade nas relações comerciais entre os diversos intervenientes ao longo da cadeia, da qual faz parte.
Embora haja "desiquílibrios" que "preocupam" e até "falta de transparência", a produção, indústria e distribuição parecem concordar que procurar culpados para a escalada dos preços dos produtos alimentares não leva a lugar nenhum, reconhecendo que, em última instância, todos saem prejudicados com a diminuição do consumo causada pela quebra do poder de compra. Defendendo que o problema tem de ser atacado "com verdade" e "sem demagogias" consideram que uma das medidas com impacto imediato está nas mãos do Governo passando pela descida do IVA à semelhança de Espanha que, ao contrário do que se diz, apontam, estará a produzir efeitos.
Representantes dos três segmentos estiveram, esta terça-feira, na Assembleia da República a explicar que na origem da escalada dos preços dos produtos alimentares estiveram os elevados aumentos dos custos dos fatores de produção, boa parte comuns, como a energia, no âmbito de uma audição na Comissão de Agricultura e Pescas, convocada a requerimento do PSD, que quis ouvir os membros da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agroalimentar (PARCA) sobre o estado de transparência, equilíbrio e equidade nas relações comerciais entre os diversos intervenientes ao longo da cadeia agroalimentar.
Na PARCA tomam assento entidades representativas dos distintos elos da cadeia agroalimentar, desde a produção primária (CAP, CONFAGRI e CNA) à transformação (FIPA e CIP) e à distribuição (APED), CENTROMARCA, bem como do Comércio (CCP), assim como as instituições dos Ministérios da Agricultura e da Economia, como Autoridadade da Concorrência ou o Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral, mas nenhum representante do Governo marcou presença na audição, o que foi, aliás, criticado pelos deputados.
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) foi a primeira a intervir, com o presidente, Eduardo Oliveira e Sousa, a apontar que, "do lado dos produtores, os números afastam-se da realidade em que está a funcionar a inflação por dois motivos distintos e ordens de grandeza muito diferentes". Se, por um lado, "há um desfasamento muito grande entre o momento em que se inicia a produção de um qualquer produto agrícola até ser comercializado e mais ainda até ser adquirido pelo consumidor", por outro, "os efeitos da escalada dos custos de produção foram introduzidos no início do ciclo produtivo".
Eduardo Oliveira e Sousa deu o exemplo do arroz e do milho que incorporaram custos durante o pior período da escalada dos custos de produção, em que "a energia sofreu aumentos de até 500%" e os combustíveis e os fertilizantes duplicaram de valor. No primeiro caso, um dos produtos que "subiu mais exponencialmente", o responsável aponta o dedo à crise energética, que começou antes da guerra na Ucrânia e que se agravou com ela, mas também ao "impacto brutal da seca na produção de culturas regadas". A consequência? "Fez escassear o arroz por falta de produção, o que conjugado com uma retração na exportação de países asiáticos, fez com que a Europa tenha ficado, de repente, numa situação de carência", explicou, realçando que Portugal "ficou pendurado na sua própria produção nacional" que não só foi mais reduzida, como saiu mais cara.
O dirigente da CAP acusou também o Governo de ter "muita culpa" no cartório, já que os aumentos de preços dos alimentos andam à volta de 20 a 22% em Portugal e entre 15 e 16% em Espanha, porque Madrid ajudou os agricultores. E continuou: "O Ministério da Agricultura é um ministério desmantelado e inerte que por não perceber o próprio funcionamento do sistema produtivo inventa novidades, fugindo para a frente que, em vez de ser bombeiro prefere ser polícia, o que tem consequências graves".
José Gonçalves, da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), identificou também um "problema de falta de transparência" na própria cadeia, havendo "incapacidade em verificar quais são as margens de lucro de cada um dos elos". "É preocupante, porque há diferentes dados, mas não oficiais que permita ver se há aproveitamento por alguma das partes", sendo que, ressalvou, "no caso da produção os números do Instituto Nacional de Estatística são muito claros". Números que, indicou, mostram que "tivemos um aumento exponencial dos custos, primeiro ainda em 2021, motivado pela retoma da própria economia e, depois, em 2022, devido à guerra".
"Entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022 houve um aumento de 48% dos custos dos fatores de produção. Se analisarmos os preços dos produtores vemos que houve um aumento de apenas 38% no mesmo período", ficando assim claro que "os agricultores não fizeram refletir os aumentos que tiveram", reforçou, lembrando, aliás, que, nos últimos dois anos, houve "uma perda clara de rendimento da atividade agrícola".
Nuno Serra, secretário-geral adjunto da Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola de Portugal (Confagri) tocou precisamente nessa ferida: "Os agricultores trabalharam de manhã à noite, mas tiveram menos 12% de rendimento. Todos os elos da cadeira tem de ter rendimentos, mas os agricultores não conseguiram", já que "houve menos produção e mais custos".
Da Confragi falou ainda Augusto Ferreira que quis esclarecer os apoios ao setor. "É verdade que houve alguns, mas muitos foram tardios, demasiado reativos e, na prática, resultaram em mais 1,9% do que era normal porque basicamente esteve em causa a antecipação de ajudas", além de que "não podemos esquecer que todos estes apoios têm como alvo os que já beneficiam da Política de Agrícola Comum (PAC), havendo 60 mil agricultores que, por razões históricas, estão de fora".
Já Jorge Henriques, intervindo na qualidade de vice-presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), deu conta dos custos sofridos pela indústria transformadora, a começar pelo gás natural pela eletricidade, com aumentos médios acima de 300 e de 150%, respetivamente, cujos contratos são "a um ou a dois anos". Subidas exponenciais, acima dos 150%, tiveram também os contentores - fundamentais para a indústria agroalimentar que "importa mais de 40% das necessidades que tem de transformação" - e as matérias-primas, desde o centeio ao trigo e ao milho, parte na ordem dos 60%, especificou. "Nessa altura ninguém contactou a indústria a perguntar quanto estava a custar o aprovisonamento. A preocupação era não haver ruturas e os industriais cumpriram a sua missão", lamentou.
O também presidente da Federação das Indústrias Portuguesas Agroalimentares (FIPA) foi também recuperar os "aumentos verdadeiramente astronómicos nas embalagens": "o vidro subiu em média mais de 55%, o cartão entre 25 e 50%, o plástico mais de 25% e o metal mais de 30%", disse, apontando que as indústrias que tentaram ser mais amigas do ambiente, incorporando mais reciclado foram mais penalizadas, com aumentos superiores a 40%.
"Ninguém tem prazer em aumentar preços", vincou, argumentando que "os preços passados ao consumidor não só refletem estes aumentos, como também o esforço da cadeia para os mitigar".
Do lado da distribuição o diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), Gonçalo Lobo Xavier, observou que "a evolução dos preços na cadeia de valor teve um comportamento claro, com o índice de preços no produtor a crescer 35%, o da indústria 31% e o no consumidor 19,9%. "Estamos a vender abaixo do preço de custo? Não. Quer dizer que o retalho é um negócio de volume, de margens baixas de 2 e 3%". "Desengane-se quem ache que iriamos estar a lançar culpas uns contra os outros", afirmou, após considerar de "grande mérito" o facto de toda a cadeia estar no parlamento a falar do tema.
Isto depois de a distribuição alimentar ter sido "o bobo da festa de todas as manifestações públicas" ao longo das últimas semanas, na sequência da "discussão lançada de forma desajustada por parte da ASAE" que, apontou Gonçalo Lobo Xavier, teve um "dano reputacional enorme" em "empresas que pagam impostos e investem na indústria e na produção agrícola", mas também nos "mais de 95 mil colaboradores que"estão a sofrer com uma suspeição baseada em exemplos casuísticos".
"Começamos por dizer que havia uma explicação lógica para o aumento de preços na distribuição que refletia aumentos de custo que estavam a chegar de modo gaseado e desfasado ao consumidor, mas ninguém nos ouviu", lamentou.
Também o diretor-geral da Centromarca, Pedro Pimentel, apontou que "especulação e inflação são coisas muito diferentes", chamando a atenção que não se pode "confundir margens brutas e líquidas", numa intervenção em que chamou a atenção para outros custos suportados pelas empresas. "Muitas empresas para se abastecerem tiveram de aumentar a capacidade de armazenagem e de 'stock', desenvolvidas num período de aumento das taxas de juro", observou, recordando que, há menos seis meses, o que discutia era se havia produtos.
Dos apoios ao choque fiscal
"As entidades estão alinhadas quanto às causas dos aumentos dos fatores de produção, mas importa perceber na formação do preço ao consumidor se o aumento reflete apenas o aumento direto dos custos de produção ou se há aumenmtos das margems líquidas na cadeia (...) concordamos que não pode haver caças às bruxas e procura apressada de culpados", resumiu João Nicolau, do Partido Socialista (PS), após as exposições dos representantes da cadeia agroalimentar a quem foram pedidas também opiniões sobre as medidas do Governo, como o Observatório de Preços, e sobre quais seriam as soluções para resolver a atual crise.
"O elefante na sala é ser o Estado o primeiro a ganhar com esta subida de preços. A senhora ministra da Agricultura veio com ideias peregrinas, como o observatório e o selo de preço justo. (...) Não vos parece que o que precisamos é de um choque fiscal no IVA?", questionou o deputado do Chega, Pedro Frazão. João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, manifestou-se na mesma linha: "Não é para vocês evidente que redução de impostos tem impacto direto nos preços não só ao consumidor mas nalguns fatores de produção?"
João Dias também atacou a ideia do "preço justo". "Quando o Governo vem dizer que a solução é colocar um selo de preço justo é porque está a admitir que há preços abusivos. Então que medidas adotar para corrigir os outros?", indagou o deputado do Partido Comunista, após fortes críticas à grande distribuição.
De apoios diretos aos produtores até a linhas de tesouraria para a indústria, os representantes da cadeia agroalimentar sinalizaram potenciais soluções para a crise, considerando, porém, que a medida com efeitos imediatos nos preços seria a descida do IVA, à semelhança de Espanha, que o eliminou em alimentos considerados de primeira necessidade, como o pão ou o leite, uma hipótese afastada à priori pelo governo português com o argumento de que não estava a produzir os efeitos desejados no país vizinho onde esse "desconto" tinha sido "comido" pela inflação.
Contudo, essa não é a informação que chega à indústria. Segundo Jorge Henriques, essa foi a perceção inicial porque a redução do IVA "coincidiu com o período cíclico em que as empresas aumentam as suas tabelas de preço", o que terá "ofuscado o efeito". "Os colegas em Espanha estão a dizer-me que, muito em breve, surtirá efeitos", partilhou o dirigente da FIPA. Também Gonçalo Lobo Xavier, da APED, afirmou ser preciso fazer uma avaliação mais longa para perceber que a descida do IVA "está a funcionar em Espanha".