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Vítor Gaspar: de inimigo ideológico a aliado da esquerda

A tarde estava reservada para discutir a sustentabilidade da dívida pública, mas acabou por falar-se de tudo um pouco e quase nada do tema principal. Hoje, no Parlamento, Maria Luís Albuquerque foi dada como desaparecida, Paulo Macedo promovido a Ministro das Finanças sombra e Vítor Gaspar transformado num símbolo da derrota da austeridade.

Miguel Baltazar/Negócios
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A cacofonia política extravasou esta quinta-feira para a Assembleia da República, onde oposição e Governo travaram um debate de surdos. Num dia onde a agenda marcava a sustentabilidade da dívida pública, cada um escolheu o seu menu temático. O Governo desviou o assunto para a política de Saúde. Os partidos da maioria quiserem medir o pulso aos cuidados paliativos, aos concursos de enfermeiros, à detecção de fraudes no sector. Na oposição, acentuou-se o “pântano” a “podridão” e a “agonia” da situação interna. Maria Luís Albuquerque que esta semana chegou à pasta mais importante do Governo, foi dada como desaparecida, e Vítor Gaspar, que quis sair de cena, tornou-se omnipresente.

 

Passava pouco das três da tarde quando o Bloco de Esquerda (BE) deu início ao debate, com o tema da sua lavra, para registar a estranheza pela composição da comitiva do Governo. Para falar da sustentabilidade da dívida pública, o Governo escolheu Paulo Macedo, ministro da Saúde, como porta-voz.

 

Onde pára a recém-empossada ministra das Finanças e porque se eximiu ao debate, foram interrogações que acabaram por dominar o início do encontro.

 

Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, arrisca que o Governo está a esconder a alcunhada “senhora swap”. Já para o PS, a ministra das Finanças nem sequer existe. Diz Eduardo Cabrita que “num momento decisivo da consolidação da confiança de Portugal (…), Portugal não tem ministro das Finanças”. Maria Luís Albuquerque não tem apoio político e não devia ter sido empossada pelo Presidente da República, sentenciou.

 

Neste estado de semi-existência de Maria Luís Albuquerque, Paulo Macedo adquire o estatuto de “ministro das Finanças sombra”, catalogou Pedro Filipe Soares. Já Bernardino Soares, do PCP, encontrou outra explicação, sem mudar a pasta ao responsável: "Este Governo está ligado à máquina e, por isso, ninguém melhor quer o ministro da Saúde para vir ao plenário".

 

Vítor Gaspar andou de boca em boca

Entre presentes e ausentes, o protagonismo do dia coube contudo a Vítor Gaspar. O ex-ministro das Finanças saiu totalmente de cena, já não tem estatuto efectivo nem tácito no Governo, mas foi chamado à liça pelo menos oito vezes pelo BE e pelo menos uma vez pelo PS.

 

A carta de demissão do ex-ministro das Finanças é lida pela esquerda como uma assunção do fracasso da política de austeridade, um reconhecimento da necessidade de mudança de rumo e como um sinal da fragilidade governativa desta coligação. É, por isso, um valioso instrumento de combate político.

 

A deputada Catarina Martins, do BE, foi a primeira a aludir ao nome do ex-ministro das Finanças.

 

No discurso inicial do seu partido, diz que “Pedro Passos Coelho e Paulo Portas conseguiram em quatro dias o que parecia impossível: redimir a imagem do Governo de Pedro Santana Lopes”. É um “espectáculo indigno o que nos tem sido servido hora a hora nos últimos dias”, acusa a deputada, que invoca a carta de Vítor Gaspar para atestar a tese do seu partido de que “os custos do ajustamento não são comportáveis” e constituem “um beco sem saída”. Uma mensagem que seria repetida várias vezes.

 

Com a questão da sustentabilidade da dívida a entrar lentamente no debate, a deputada lembrou que os juros da dívida passaram de 3% a 5% do PIB no espaço de dois anos e que o défice, ao invés de cair, se tem agravado.

 

O partido reclama, por isso, uma renegociação com credores privados e oficias tendo em vista o corte de 50% da dívida pública de médio e longo prazo. Quer que se emitam novos títulos do tesouro com maturidades de 30 anos e que se limite o pagamento de juros da dívida ao ritmo do crescimento das exportações.

 

Paulo Macedo, ministro da Saúde de facto, respondeu com um balanço… na área da Saúde. A estratégia parecia afinada com o CDS e o PSD, que tinham ensaiado perguntas sobre questões tão laterais como o combate à fraude no sector, os cuidados continuados e paliativos ou os concursos de enfermeiros.

 

A oposição bateu o pé, fez queixa à Presidente da Assembleia da República, e Paulo Macedo lá sublinhou que até gostaria de responder a perguntas sobre a sustentabilidade da dívida, mas, até aquele momento do debate, só tinha registado … duas.

 

Afinal, também a esquerda se desviara do tema central para se centrar sobretudo na actual indefinição política. E lá explicou que o seu discurso não tinha sido assim tão errante, uma vez que” a política de saúde e a sustentabilidade da dívida são temas que não podem ser separados”.

 

 

“Sus-ten-ta-bi-li-da-de" da dívida, enfim

Quando pegou na sustentabilidade da dívida, sem rodeios, foi para endurecer as palavras e elevar o tom. “Onde estão os estudos? Quais as implicações destes factos [as propostas do BE para a renegociação]” perguntou Paulo Macedo, que pediu ao partido que responda com números e factos, e se deixe de “brincadeiras”.

 

Renegociar a dívida? “Se é o BE que pede, claro que os credores internacionais vão acatar”, ironizou o ministro. Outra estocada foi desferida quando gracejou que o cenário defendido pelo BE “seria teoricamente possível se não tivéssemos de fazer novos pedidos de financiamento”.

 

Se quando respondeu com saúde às perguntas de dívida Paulo Macedo já tinha eriçado os deputados bloquistas, o sarcasmo com que o ministro da Saúde abordou as propostas de renegociação atiçou os ânimos.

 

Luís Fazenda defendeu a honra da bancada acusando Macedo de “jactância” e “arrogância”. “O senhor ministro tentou aqui achincalhar as ideias, sem qualquer elevação intelectual nem ética”, replicou o deputado, para quem Macedo “veio a este debate e não disse nada sobre a dívida pública”.

 

O tema do dia é a “sustentabilidade”, “sus-ten-ta-bi-li-dade da dívida”, soletro. Para refutar o rótulo de radicalismo que Paulo Macedo tentara colocar ao partido, Fazenda socorreu-se de Silva Lopes: “Foi duas vezes Ministro das Finanças deste País disse que 50% da divida não é pagável”. Pessoas das bancadas da direita também pensam que ela não é pagável. Estamos num colete de forças” e a atitude intelectualmente honesta é responder à pergunta “a dívida pública é sustentável?”

 

1, x, 2, agora escolha

Pedro Filipe Soares estendeu uma última oportunidade aos quatro governantes que se deslocaram ao Parlamento: “Fizemos uma pergunta ao Governo, pode responder qualquer um dos seus membros, incluindo o dr. Carlos Moedas [aludindo a um “post” que em 2010 terá sido escrito pelo agora secretário de Estado no blogue “31 da Armada” onde, já na altura, dizia que Portugal tinha de reestruturar a dívida].

 

“Até podem responder por uma tripla: sim, não, talvez”, atirou o líder Parlamentar do BE.   

 

Mas o boletim ficaria em branco. A última palavra neste debate desafinado coube ao secretário de Estado das Finanças, Manuel Rodrigues, que preferiu enfatizar que “nos últimos dois anos alcançaram-se grandes esforços no ajustamento da economia”, e que “não devemos, não podemos voltar para trás”.

 

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