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O "pasticcio" de Renzi

Reina a confusão em Itália. O referendo deste fim-de-semana dá o tiro de partida para eleições que, em 2017, vão moldar o futuro próximo da Europa. O resultado desta consulta popular é uma incógnita, mas já se tecem vários cenários. Os mais catastrofistas apontam para o fim do euro. O receio é que se instale o "pasticcio" na Europa.

Bloomberg
02 de Dezembro de 2016 às 14:00
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"Pasticcio" poderá traduzir-se como "confusão" ou "situação difícil de resolver". Não espanta, portanto, que seja esta a expressão mais em voga nas últimas semanas em Itália. O primeiro-ministro, Matteo Renzi, propôs-se mudar a Constituição para pôr fim à tradicional instabilidade política italiana e conferir governabilidade ao país, mas acabou por somar instabilidade ao já instável sistema político transalpino.

Os partidários do "sim" ao referendo constitucional agendado para este domingo, 4 de Dezembro, asseguram que só esta reforma permitirá superar o "pasticcio" inerente ao bicameralismo perfeito italiano, segundo o qual as duas câmaras do Parlamento detêm poderes equivalentes. O ex-Presidente e actual senador vitalício, Giorgio Napolitano, figura muito popular para a opinião pública, afirmou no "Porta a Porta", da Rai1, que com o actual sistema "temos tudo entregue à incerteza". Já os defensores do "não" contrapõem que o Executivo Renzi pretende "substituir o bicameralismo paritário por um bicameralismo 'pasticciatto'" - ou seja, trocar o actual sistema por uma fórmula geradora de uma ainda maior confusão.

Afinal, em que consiste esta reforma constitucional? Também designada de lei Boschi (referência à ministra Maria Elena Boschi, responsável pelo processo), o principal objectivo desta reforma passa por eliminar o sistema bicameral. Prevê a concentração do poder legislativo na câmara baixa (dos deputados), que fica ainda com responsabilidade exclusiva para votar moções de (des)confiança ao Governo em exercício. Por outro lado, relega o Senado (câmara alta) para funções essencialmente de representação regional - as regiões também perdem poderes para o Estado central - embora os senadores mantenham competências legislativas em matérias de âmbito constitucional. "Em causa está o reforço do poder executivo", resume Miguel Poiares Maduro, professor de Direito da União Europeia do Instituto Universitário Europeu, em Florença.

O bicameralismo perfeito é apontado como o factor que mais contribui para a incapacidade do Estado italiano se auto-reformar e para que a prática instituída em Itália seja a de não terminar mandatos. A tradicional instabilidade política fez com que o país tenha conhecido 65 governos desde a implantação da República, em 1946. A obrigatoriedade de aprovação de leis por ambas as câmaras - que, sendo eleitas de forma distinta, geram diferentes maiorias - faz com que um projecto de lei possa saltar durante anos entre a Câmara dos Deputados e o Senado. É o "pingue-pongue legislativo" que Renzi critica e que o levou a dizer que o actual sistema político "comigo não dá". O mesmo que leva Poiares Maduro a "compreender" as razões que levaram o líder do PD a convocar o referendo: "É muito difícil aprovar normas que correspondam a reformas estruturais quando é necessária maioria nas duas câmaras."

Os erros de Renzi

Conhecido como "político veloz", Matteo Renzi terá cometido dois erros. Primeiro, ter-se-á precipitado ao avançar em paralelo com a reforma constitucional e a nova lei eleitoral (Italicum). O Italicum - que, apesar de já estar em vigor, aguarda ainda pronunciamento do Tribunal Constitucional - foi desenhado para facilitar a formação de maiorias na câmara baixa mediante a atribuição de um prémio de maioria. Em conjunto, estas duas reformas providenciam uma inédita concentração de poder no partido maioritário no Parlamento, a quem cabe eleger o chefe de Governo. Ora, a oposição percebeu que só junta poderia disputar a hegemonia do partido de Renzi ao centro e centro-esquerda. Foi isso que levou forças tão diversas quanto o anti-euro e populista Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo, a direita tradicional do Força Itália do sempiterno Silvio Berlusconi e o partido de extrema-direita Liga do Norte, de Matteo Salvini, a formarem um bloco uno contra o primeiro-ministro e a reforma constitucional.

O segundo erro de Renzi terá sido a garantia, dada em 2015 quando ainda mantinha níveis elevados de popularidade e o "sim" surgia à frente nas sondagens, de que se demitiria se o eleitorado não viabilizar a reforma constitucional. Só que, desde então, quase tudo mudou. Apesar das reticências face às indicações das sondagens, depois das disparidades nos resultados do referendo britânico e das presidenciais norte-americanas, a verdade é que todos os estudos de opinião divulgados desde Outubro atribuem a vitória ao "não" no referendo. Além disso, o partido do comediante Grillo - que foi o grande vencedor das eleições locais deste ano, conquistando Roma e Turim - surge praticamente a par do PD nas sondagens.

"Renzi não previu a subida do 5 Estrelas e apostou em duas reformas que conduzem à centralização do poder executivo", constata Poiares Maduro. O economista Ricardo Paes Mamede não subscreve a ideia de que o líder italiano tenha cometido erros de avaliação. Lembrando que "governar Itália não é fácil", este professor de Economia Política do ISCTE atribui uma perspectiva voluntarista a Renzi, que "sempre acreditou que só seria possível fazer a mudança com outro sistema político", tendo-se visto a si próprio "como alguém que vai salvar Itália das suas velhas contradições".

Mas se a conjugação do Italicum com a lei Boschi começou por assustar a oposição, agora é Renzi quem se mostra receoso. O que já levou o antigo autarca de Florença a anunciar que o Italicum será modificado. A intenção é clara: impedir que seja o 5 Estrelas a força mais beneficiada pelas reformas de Renzi. Wolfgang Münchau, editor do Financial Times, escreveu isso mesmo, esta semana, ao afirmar que a intenção passa somente por "manter o rebelde Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo afastado do poder".

Referendo à Constituição ou à governação

Ao fazer depender a sua continuidade à frente do Governo de uma hipotética vitória do "sim", Matteo Renzi acabou por instar inadvertidamente o eleitorado a aproveitar o referendo para se pronunciar sobre a sua própria governação. Outro elemento que alimenta a confusão em torno deste referendo, explica Stefano Ceccanti. Para este professor de Direito Constitucional da Universidade romana La Sapienza, "uma parte do eleitorado vai avaliar o mérito da reforma e outra o do Governo. É por isso que as sondagens são incertas", avisa. Além de que, por determinação constitucional, é proibido publicar sondagens nos 15 dias anteriores à consulta popular, o que eleva o grau de incerteza relativamente ao resultado final. Alertando para a falibilidade das sondagens, Ceccanti defende que "a reforma em si teria maior consenso do que a actuação do Governo".

Já o professor Poiares Maduro acredita que Renzi tanto venceria o referendo constitucional como um referendo à sua governação, atribuindo o problema ao facto de a "opinião pública ter ficado assustada com a perspectiva de concentração de poder". O economista Paes Mamede apresenta uma visão diferente, considerando que Renzi "está a pagar o preço do posicionamento do PD muito ao centro, negligenciando a esquerda". Os estudos de opinião divulgados pela imprensa italiana apontam precisamente para a dificuldade do primeiro-ministro em mobilizar o eleitorado mais à esquerda - que se antevê poder votar maioritariamente no "não" - e o mais jovem (com menos de 35 anos).

Assumindo a maior probabilidade de vitória do "não", e que perante tal cenário Renzi se demite, abre-se um novo período de indefinição política em Itália. Nesse caso, "teríamos eleições antecipadas num curto período de tempo", assegura Stefano Ceccanti. O docente do ISCTE concorda e antecipa que, "se vencer o 'não', vamos ter um período de enorme incerteza em que eleições vão ser inevitáveis" e acrescenta que, mesmo "não subscrevendo a ideia de colapso", isso provocará um "período de grande instabilidade na Europa".

Princípio do fim do euro?

Numa perspectiva catastrofista, tanto Wolfgang Münchau como o Wall Street Journal antevêem que uma vitória do "não" acabará por implicar a saída de Itália da Zona Euro. Esta percepção resulta da hipótese de o Movimento 5 Estrelas, que promete referendar a permanência italiana na Zona Euro, chegar ao poder. Além do mais, o partido de Grillo tem a narrativa muito facilitada, bastando-lhe recordar que a economia transalpina permanece estagnada desde a adopção do euro.

Todavia, será cedo para grandes previsões. São múltiplos os cenários possíveis. Renzi pode demitir-se e ser novamente incumbido de formar Governo pelo Presidente da República, Sergio Mattarella, ou apresentar a demissão mesmo que vença o referendo, assim tentando obter a legitimidade eleitoral nunca obtida (Renzi chegou ao poder em 2014 através de um golpe palaciano no seio do PD que retirou Enrico Letta do poder). O recurso a um governo tecnocrata faz parte da tradição italiana e não é hipótese a excluir. Até já se fala na possibilidade de o actual ministro italiano das Finanças, Pier Carlo Padoan, poder seguir as pisadas do também ex-titular das Finanças, Mario Monti, e assumir a chefia de um Executivo de perfil técnico. A este respeito, Renzi assumiu que "existe o risco de um Governo tecnocrata". Mas o mais provável seria mesmo haver eleições antecipadas. Grillo já avisou que, se Renzi perder o referendo, o 5 Estrelas irá pedir a Mattarella que convoque eleições o quanto antes.

Independentemente do que a jusante viesse a ser desencadeado por uma crise política, a montante haveria uma quase certa crise bancária em Itália, com potenciais efeitos de contágio para o restante sistema financeiro do bloco do euro. Com um total acumulado de cerca de 380 mil milhões de euros em crédito malparado, "a situação bancária em Itália é a mais grave de toda a Europa", salienta Paes Mamede. Há ainda o problema da dívida pública italiana (superior a 130%, é a segunda mais alta da Zona Euro), que, aliada a uma crise política, levaria a uma inexorável subida dos juros das dívidas públicas. Há poucos dias, o Banco Central Europeu (BCE) avisava que um "forte choque na confiança" castigará as condições de financiamento dos países mais "vulneráveis" do euro, enquadrando este alerta com a "elevada incerteza política a nível global". E esta semana, em entrevista ao El País, o presidente do BCE, Mario Draghi, notou que, neste momento, "predomina a incerteza política" e que a integração europeia se "debilitou nos últimos tempos, em parte devido aos populismos".

No fundo, há um medo generalizado de que o referendo transalpino possa reafirmar, agora em Itália, o cansaço dos eleitores face ao "establishment" e a preferência por alternativas como aquela representada pelo assumidamente populista 5 Estrelas. No Corriere della Sera, o politólogo Franco Venturini sublinha que o referendo deste domingo "assinala também o início de uma época eleitoral europeia capaz de determinar a morte da UE e de nos projectar no mundo inexplorado daquele cansaço sistémico que já elegeu [Donald] Trump e fez vencer o Brexit". Os próximos actos são já em 2017 na Holanda, França e Alemanha. Teme-se um "pasticcio" na Europa.





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