Notícia
“Quo vadis”, Europa?
Para onde caminha a Europa? O referendo italiano e a reedição das eleições presidenciais austríacas deste fim-de-semana são testes determinantes para o futuro da UE. Seguem-se, no próximo ano, as eleições na Holanda, em França e na Alemanha.
A Europa não sabe para onde caminha. E parece já não saber o que é. Se a União Europeia, esse sonho de paz continental, está presa em fantasmas, interesses e burocracias várias, a crise das dívidas soberanas, a vaga de imigrantes e as tempestades do Brexit e de Donald Trump apressaram a sensação da sua fragilidade. Erguem-se muros e a retórica nacionalista voltou a ser ecoada nas ruas. A Europa do Iluminismo deixou de ser também uma fonte de influência cultural e moral que povos de todo o mundo seguiam. Para onde caminha a Europa? Claramente para o fim de um ciclo.
Ao longo dos séculos, a ideia de Europa manteve-se sempre uma utopia. As divisões estatais permaneceram como espinhas cravadas no sonho de impérios ou de tentativas hegemónicas. Os mais pequenos desconfiavam das maiores potências, estas desejavam sempre impor a sua força e interesses estratégicos, mesmo no tempo das aventuras coloniais. Houve muitas tentativas de unificar a Europa depois de Carlos V, nomeadamente o seu centro. A travar o crescimento estava sempre o império russo ou o otomano. Mas tentativas não faltaram, de Napoleão a Hitler. Pelo caminho ficaram tentativas como as do Cardeal de Richelieu que, ao tentar unificar França debaixo do poder da Coroa, pretendia estabelecer o seu país como a força unificadora da Europa. Ou após a Guerra dos 30 Anos (1618-1648), quando os conflitos entre católicos e protestantes arrastaram para o conflito diversas nações, que acabariam por dar azo à chamada Paz de Vestfália. Este acordo seria o pano de fundo para a criação de Estados-nação. Afinal, a palavra Europa só viria a começar a ser utilizada como referência política no século XVII.
O modelo actual (de cariz tecnocrata) nasceu com os desastres de duas guerras mundiais. A ideia, pós-1945, era conter a força alemã. Indo ao encontro de um conceito de união baseado num acordo económico e industrial entre França e a Alemanha. A Grã-Bretanha sempre esteve um pouco à parte destas cogitações. A "construção da Europa" seria um conceito tecnocrático com protecção política. Não havia europeus: surgia uma superestrutura política e económica que funcionava por eles. A ideia era que, um dia, baseada na democracia, talvez fosse possível estabelecer um modelo semelhante ao da federação americana. Algo esquecido tem sido a importância da "resistência" aos nazis. Que mobilizou homens e mulheres de todo o continente contra um inimigo único.
Se o modelo tecnocrático da Europa vem do sonho de homens como Jean Monnet ou Robert Schumann, este modelo que nasceu na resistência foi traduzido num documento escrito na ilha italiana de Ventotene por três homens: Altiero Spinelli, Ernesto Rossi e Eugenio Colorni, que tinham sido detidos na ilha por Mussolini. Spinelli sempre foi um advogado do federalismo europeu. Em 1944, defendia a tese de que o fascismo nascera da ideologia da independência nacional e do capitalismo imperialista. E que a vitória de americanos e ingleses apenas restabeleceria a velha ideia de Estados-nação, como sempre. Para ele, era necessário resistir e criar uma Federação Europeia, porque, escrevia-se no manifesto, "a soberania absoluta dos Estados-nação levou a que cada um deles tentasse dominar os outros". A solução passaria por dissolver os Estados-nação. Porque "só uma União federativa impedirá a Alemanha de juntar-se a uma comunidade europeia sem se transformar num perigo para os outros povos".
Após a guerra, Spinelli chegou a ser eleito, em 1979, para o Parlamento Europeu, sendo o seu grupo de influência, conhecido pelo Clube do Crocodilo (nome do restaurante de Estrasburgo onde foi fundado em 1980), determinante para a aprovação do tratado de Maastricht. Afinal, as três décadas após o final da II Guerra Mundial foram as do consenso social-democrata - Estados intervencionistas com largos sectores públicos, comprometidos com o pleno emprego e com a redistribuição de riqueza. A estabilidade, em suma.
O músculo nacionalista
O certo é que já se vinha a assistir à erosão do projecto europeu consubstanciado pela União Europeia antes do colapso económico e financeiro de 2008. Que abriu feridas maiores entre as nações e os povos. A austeridade afastou, ainda mais, Norte e Sul. Com o Estado a retirar-se da vida pública, o interesse dos cidadãos pela democracia também foi desaparecendo. A ordem social-democrática do pós-guerra está a desvanecer-se. E está a surgir um novo desafio: o do populismo e do músculo nacionalista.
Um dos mais atentos analistas do mundo actual, John Gray, deixou, em "False Dawn" (de 2009), uma interrogação no ar: porque é que o colapso económico desses anos tinha tornado mais difícil a cooperação internacional e tinha refeito pressões centrípetas? Os governos foram as vítimas da crise. Não admira o que se passa neste momento em Itália, em França, na Holanda, na Áustria e na Alemanha. Com eleições que poderão fazer virar a lógica dos consensos. Isto enquanto na Hungria ou na Polónia surgem "democracias musculadas", que tomam opções que vão contra o espírito europeu.
Se Itália, França ou a Holanda tiverem governos nacionalistas, o futuro da UE está em sério risco. Se o referendo italiano é um teste, a incrível reedição das eleições presidenciais austríacas entre Alexander van der Bellen (um independente apoiado pelos Verdes) e Norbert Hofer (um extremista de direita do Partido da Liberdade), a 4 de Dezembro, vai ser crucial. A possível eleição de um Presidente de extrema-direita contrasta com a rejeição de candidatos da social-democracia e do centro-direita, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Hofer é um nostálgico do pan-germanismo cultural e um adversário da imigração. Nesse mesmo dia, realiza-se o referendo em Itália. Muito se vai decidir aqui.
Depois do Brexit, estes são testes determinantes. A que se seguirão eleições na Holanda, em França e na Alemanha no próximo ano. Na Holanda, de que se tem falado pouco, uma vitória da extrema-direita, que deseja um referendo para que o país saia da UE, é também crucial: é um país fundador da UE. E se Marine Le Pen vencer em França, os dados estão lançados.
A Europa está nas margens de um abismo. O euro, encarado como uma moeda estrangeira em cada país, tem sido uma amarra que tem levado os países mais fracos para a crise económica e social. Mesmo que as elites digam o contrário. Uma moeda é um contrato social: por trás dele está uma garantia soberana com o poder de impor impostos aos cidadãos em troca de bens públicos e serviços. O euro não tem esse suporte.
Jorge Sampaio, na conferência "O Futuro é Possível", sobre o futuro da Europa, dizia: "A meu ver, a actual crise tem, inequivocamente, posto a nu o chamado défice democrático europeu, ou seja, a falta de controlo democrático em determinadas instituições, designadamente a pouca consideração da Comissão Europeia pela democracia nacional nos resgates, foi assim que lhe chamou Tony Phillips no seu livro 'A Europa à beira do abismo, a crise das dívidas soberanas, memorando da periferia', de 2014. Eu tenho a convicção de que cabe à Europa contribuir para reinventar a democracia na era da globalização, até porque a Europa não é só uma parte dos problemas, mas também remédio e solução, podendo dar aos países o controlo sobre as suas políticas que se tornaram efectivamente globais."
A eleição de Donald Trump veio, no entanto, mostrar a fragilidade das opções da União Europeia, da política de alianças, à possibilidade de os EUA deixarem de ser o guarda-chuva de segurança do Velho Continente e passando por uma política de crescimento e inflação que vai ao arrepio do que foi o fundamentalismo de Bruxelas nos últimos anos. A Europa está a tactear no caos. Tem uma crise económica, mas também uma crise política e moral. E cultural, com cidadãos a deixar os poderes instituídos. E a procurarem respostas rápidas para os seus problemas. O próximo ano parece ser decisivo para esta Europa alargada que não sabe para onde quer ir.
Ao longo dos séculos, a ideia de Europa manteve-se sempre uma utopia. As divisões estatais permaneceram como espinhas cravadas no sonho de impérios ou de tentativas hegemónicas. Os mais pequenos desconfiavam das maiores potências, estas desejavam sempre impor a sua força e interesses estratégicos, mesmo no tempo das aventuras coloniais. Houve muitas tentativas de unificar a Europa depois de Carlos V, nomeadamente o seu centro. A travar o crescimento estava sempre o império russo ou o otomano. Mas tentativas não faltaram, de Napoleão a Hitler. Pelo caminho ficaram tentativas como as do Cardeal de Richelieu que, ao tentar unificar França debaixo do poder da Coroa, pretendia estabelecer o seu país como a força unificadora da Europa. Ou após a Guerra dos 30 Anos (1618-1648), quando os conflitos entre católicos e protestantes arrastaram para o conflito diversas nações, que acabariam por dar azo à chamada Paz de Vestfália. Este acordo seria o pano de fundo para a criação de Estados-nação. Afinal, a palavra Europa só viria a começar a ser utilizada como referência política no século XVII.
Se o modelo tecnocrático da Europa vem do sonho de homens como Jean Monnet ou Robert Schumann, este modelo que nasceu na resistência foi traduzido num documento escrito na ilha italiana de Ventotene por três homens: Altiero Spinelli, Ernesto Rossi e Eugenio Colorni, que tinham sido detidos na ilha por Mussolini. Spinelli sempre foi um advogado do federalismo europeu. Em 1944, defendia a tese de que o fascismo nascera da ideologia da independência nacional e do capitalismo imperialista. E que a vitória de americanos e ingleses apenas restabeleceria a velha ideia de Estados-nação, como sempre. Para ele, era necessário resistir e criar uma Federação Europeia, porque, escrevia-se no manifesto, "a soberania absoluta dos Estados-nação levou a que cada um deles tentasse dominar os outros". A solução passaria por dissolver os Estados-nação. Porque "só uma União federativa impedirá a Alemanha de juntar-se a uma comunidade europeia sem se transformar num perigo para os outros povos".
Após a guerra, Spinelli chegou a ser eleito, em 1979, para o Parlamento Europeu, sendo o seu grupo de influência, conhecido pelo Clube do Crocodilo (nome do restaurante de Estrasburgo onde foi fundado em 1980), determinante para a aprovação do tratado de Maastricht. Afinal, as três décadas após o final da II Guerra Mundial foram as do consenso social-democrata - Estados intervencionistas com largos sectores públicos, comprometidos com o pleno emprego e com a redistribuição de riqueza. A estabilidade, em suma.
O músculo nacionalista
O certo é que já se vinha a assistir à erosão do projecto europeu consubstanciado pela União Europeia antes do colapso económico e financeiro de 2008. Que abriu feridas maiores entre as nações e os povos. A austeridade afastou, ainda mais, Norte e Sul. Com o Estado a retirar-se da vida pública, o interesse dos cidadãos pela democracia também foi desaparecendo. A ordem social-democrática do pós-guerra está a desvanecer-se. E está a surgir um novo desafio: o do populismo e do músculo nacionalista.
Um dos mais atentos analistas do mundo actual, John Gray, deixou, em "False Dawn" (de 2009), uma interrogação no ar: porque é que o colapso económico desses anos tinha tornado mais difícil a cooperação internacional e tinha refeito pressões centrípetas? Os governos foram as vítimas da crise. Não admira o que se passa neste momento em Itália, em França, na Holanda, na Áustria e na Alemanha. Com eleições que poderão fazer virar a lógica dos consensos. Isto enquanto na Hungria ou na Polónia surgem "democracias musculadas", que tomam opções que vão contra o espírito europeu.
Se Itália, França ou a Holanda tiverem governos nacionalistas, o futuro da UE está em sério risco. Se o referendo italiano é um teste, a incrível reedição das eleições presidenciais austríacas entre Alexander van der Bellen (um independente apoiado pelos Verdes) e Norbert Hofer (um extremista de direita do Partido da Liberdade), a 4 de Dezembro, vai ser crucial. A possível eleição de um Presidente de extrema-direita contrasta com a rejeição de candidatos da social-democracia e do centro-direita, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Hofer é um nostálgico do pan-germanismo cultural e um adversário da imigração. Nesse mesmo dia, realiza-se o referendo em Itália. Muito se vai decidir aqui.
Depois do Brexit, estes são testes determinantes. A que se seguirão eleições na Holanda, em França e na Alemanha no próximo ano. Na Holanda, de que se tem falado pouco, uma vitória da extrema-direita, que deseja um referendo para que o país saia da UE, é também crucial: é um país fundador da UE. E se Marine Le Pen vencer em França, os dados estão lançados.
A Europa está nas margens de um abismo. O euro, encarado como uma moeda estrangeira em cada país, tem sido uma amarra que tem levado os países mais fracos para a crise económica e social. Mesmo que as elites digam o contrário. Uma moeda é um contrato social: por trás dele está uma garantia soberana com o poder de impor impostos aos cidadãos em troca de bens públicos e serviços. O euro não tem esse suporte.
Jorge Sampaio, na conferência "O Futuro é Possível", sobre o futuro da Europa, dizia: "A meu ver, a actual crise tem, inequivocamente, posto a nu o chamado défice democrático europeu, ou seja, a falta de controlo democrático em determinadas instituições, designadamente a pouca consideração da Comissão Europeia pela democracia nacional nos resgates, foi assim que lhe chamou Tony Phillips no seu livro 'A Europa à beira do abismo, a crise das dívidas soberanas, memorando da periferia', de 2014. Eu tenho a convicção de que cabe à Europa contribuir para reinventar a democracia na era da globalização, até porque a Europa não é só uma parte dos problemas, mas também remédio e solução, podendo dar aos países o controlo sobre as suas políticas que se tornaram efectivamente globais."
A eleição de Donald Trump veio, no entanto, mostrar a fragilidade das opções da União Europeia, da política de alianças, à possibilidade de os EUA deixarem de ser o guarda-chuva de segurança do Velho Continente e passando por uma política de crescimento e inflação que vai ao arrepio do que foi o fundamentalismo de Bruxelas nos últimos anos. A Europa está a tactear no caos. Tem uma crise económica, mas também uma crise política e moral. E cultural, com cidadãos a deixar os poderes instituídos. E a procurarem respostas rápidas para os seus problemas. O próximo ano parece ser decisivo para esta Europa alargada que não sabe para onde quer ir.