Notícia
Fora, mancha (de sangue) maldita
Um déspota a desfazer-se, transformado em areia ou gravilha, perante o medo e a dúvida. Por mais que a postura seja altiva, pouco há a fazer quando o âmago foi atacado. Sem espada, o nevoeiro trará um novo reino?
Depois do Teatro Nacional São João no Porto, em Junho, Macbeth está no Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa. Até 17 de Dezembro, a peça maldita volta a uma sala que viu tomada pelo fogo.
O som de trovão define o clima. Aproxima-se uma tempestade, daquelas que não se confirmam à vista desarmada. É interior, no âmago das personagens de Macbeth. Dizemos o nome à peça maldita, "a escocesa", porque estamos já fora do Teatro Nacional D. Maria II. Em Dezembro de 1964, estava a mesma obra de Shakespeare em cena, quando o fogo consumiu o edifício.
A superstição que acompanha o percurso deste texto é, por isso, ainda maior neste regresso assinado por Nuno Carinhas. Não que isso chegue a cena. O que se dá a ver é um trabalho cuidado, rigoroso, fiel aos preceitos do mestre inglês. Macbeth, simplifiquemos, é a história de um regicídio. E, acima de tudo, os receios do novo déspota de que semelhante acção possa ocorrer sobre ele.
A acção é situada, em permanência, sob uma bruma, tornando-se enigmático o negro de um palco despido. A luz vermelha a incidir sobre a gravilha do chão recorda o sangue derramado logo no início. Não há água nem esponjas que o lavem, por mais que Macbeth (João Reis) e a sua desafiadora mulher (Emília Silvestre) se tentem convencer disso.
O medo - palavra repetida quase à exaustão - toma conta do palco. Macbeth, não coroado pela sorte, mas pelas próprias mãos, vai-se deixando corroer pela dúvida. A profecia das bruxas concretizou-se, os títulos acumularam-se. E o trono, até quando durará?
O que se segue é o imaginário shakespeariano que os últimos séculos habituaram ao nível da intriga. Conspirações, esquemas, confrontos, mortes. Esse quotidiano medieval parece tão distante, mas tem muito a ensinar-nos sobre os nossos dias. Tiremos às personagens as peles e os tecidos quentes, as suas palavras datadas, os seus nomes: aí encontramos a base do que é humano. No seu lado mais podre.
As decisões desta narrativa dão-se com rapidez, toda ela se precipita para a tragédia. Mas, em simultâneo, há uma duração contrária na sua colocação em palco. Não pelas palavras ou não pelo movimento dos actores, onde há urgência. Trata-se de uma lentidão sintomática daquilo que Macbeth tem para transmitir: a forma como essa dúvida e esse medo nos desfazem, por dentro, devagar. Nos monólogos de João Reis, onde a fragilidade das palavras contrasta com a postura de rei, torna-se notório.
"Quem dorme e quem está morto não passa de uma imagem", ouve-se, para acalmar Macbeth. Sem efeito na consciência. Há imagens, como fantasmas, que não nos soltam. Nem o tirano lhes pode fugir. No bosque, a batalha está latente, as espadas a postos. Aproxima-se uma nova Escócia.
O som de trovão define o clima. Aproxima-se uma tempestade, daquelas que não se confirmam à vista desarmada. É interior, no âmago das personagens de Macbeth. Dizemos o nome à peça maldita, "a escocesa", porque estamos já fora do Teatro Nacional D. Maria II. Em Dezembro de 1964, estava a mesma obra de Shakespeare em cena, quando o fogo consumiu o edifício.
A acção é situada, em permanência, sob uma bruma, tornando-se enigmático o negro de um palco despido. A luz vermelha a incidir sobre a gravilha do chão recorda o sangue derramado logo no início. Não há água nem esponjas que o lavem, por mais que Macbeth (João Reis) e a sua desafiadora mulher (Emília Silvestre) se tentem convencer disso.
O medo - palavra repetida quase à exaustão - toma conta do palco. Macbeth, não coroado pela sorte, mas pelas próprias mãos, vai-se deixando corroer pela dúvida. A profecia das bruxas concretizou-se, os títulos acumularam-se. E o trono, até quando durará?
O que se segue é o imaginário shakespeariano que os últimos séculos habituaram ao nível da intriga. Conspirações, esquemas, confrontos, mortes. Esse quotidiano medieval parece tão distante, mas tem muito a ensinar-nos sobre os nossos dias. Tiremos às personagens as peles e os tecidos quentes, as suas palavras datadas, os seus nomes: aí encontramos a base do que é humano. No seu lado mais podre.
As decisões desta narrativa dão-se com rapidez, toda ela se precipita para a tragédia. Mas, em simultâneo, há uma duração contrária na sua colocação em palco. Não pelas palavras ou não pelo movimento dos actores, onde há urgência. Trata-se de uma lentidão sintomática daquilo que Macbeth tem para transmitir: a forma como essa dúvida e esse medo nos desfazem, por dentro, devagar. Nos monólogos de João Reis, onde a fragilidade das palavras contrasta com a postura de rei, torna-se notório.
"Quem dorme e quem está morto não passa de uma imagem", ouve-se, para acalmar Macbeth. Sem efeito na consciência. Há imagens, como fantasmas, que não nos soltam. Nem o tirano lhes pode fugir. No bosque, a batalha está latente, as espadas a postos. Aproxima-se uma nova Escócia.